STF julga ação que pode causar prejuízo de R$ 258 bilhões para a União
13 de maio de 2021Cármen Lúcia dá voto ‘meio termo’ sobre impasse bilionário. Enquanto reforma tributária não avança, STF julga ações sobre impostos que afetam contas públicas
Cármen Lúcia, ministra Do Supremo Tribunal Federal (STF) – Rosinei Coutinho/SCO/STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou na quarta-feira (12) a decidir o desfecho de um impasse bilionário entre a União e empresas em torno da retirada do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, um tributo federal.
A alteração da regra foi decidida pela Corte em 2017, mas o governo tenta limitar os efeitos da medida que, na prática, reduz o montante sobre o qual o imposto incide.
A mudança no cálculo é positiva para contribuintes, mas preocupa a equipe econômica uma possível onda de ações na Justiça que pode fazer com que o Fisco tenha que devolver às empresas tributos cobrados antes da mudança, a depender dos efeitos retroativos.
Essa conta poderia chegar a R$ 258,3 bilhões, segundo cálculos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
Cármen Lúcia, relatora do caso, foi a primeira a votar no julgamento inciado nesta quarta. A ministra deu um voto considerado um meio termo: nem tanto a favor dos argumentos da União, nem tanto pró-empresas.
A magistrada entendeu que a decisão deve ter efeitos a partir da data do julgamento de quatro anos atrás, 15 de março de 2017, com a exceção das ações judiciais e administrativas que já haviam sido protocoladas. O julgamento foi interrompido e deve ser retomado nesta quinta.
No recurso apresentado ao Supremo, a União pede para que os efeitos dessa decisão só passem a valer a partir do fim do julgamento iniciado nesta quarta, sem exceções.
No fim de abril, o ministro da Economia, Paulo Guedes, se reuniu com o presidente do STF, ministro Luiz Fux, para reforçar a necessidade de que haja a chamada modulação, ou seja, uma restrição dos efeitos da decisão a casos novos. Nas contas da equipe econômica, o impacto seria de R$ 245 bilhões.
Ações com impacto nas contas públicas
O julgamento é o caso de maior destaque dentro de uma série de decisões do Supremo com impacto significativo nas finanças do país que entraram no radar da equipe econômica.
Também estão no radar decisões do STF que implicam em despesas, como a que determinou, no fim de abril, que o governo institua renda básica para os brasileiros em situação de pobreza e extrema pobreza a partir de 2022.
O ministro Marco Aurélio Mello concedeu liminar para que a União adote medidas necessárias para a realização do Censo Demográfico ainda neste ano.
A professora da FGV Direito São Paulo Tathiane Piscitelli afirma que o governo precisa comprovar os cálculos dos impactos fiscais das medidas. Para ela, não está claro como a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) fez a conta do impacto do julgamento do PIS/Cofins:
"O Supremo pode considerar o impacto financeiro de uma decisão e esse impacto pode ser um argumento válido nas decisões. Só que tem um critério para que isso seja considerado válido. É preciso que o argumento seja sólido. A Fazenda Pública deve ser capaz de demonstrar que de fato aquela decisão vai se transformar num impacto tão significativo para os serviços públicos".
Guedes conversou com Fux sobre o tema
Nos bastidores, integrantes do Ministério da Economia têm argumentado sobre a necessidade de os ministros do STF ficarem atentos à crise nas contas públicas nas suas decisões.
Foi com esse intuito que o ministro Paulo Guedes quis incluir o presidente do STF no Conselho Fiscal da República, órgão proposto no fim de 2019 para acompanhar as contas da União.
O atual presidente do STF, ministro Luiz Fux, pediu a Guedes para não participar do órgão por entender que ele tomaria decisões que poderiam ser analisadas pela Corte.
No STF, ministros têm dito reservadamente que o “pragmatismo” do governo não pode se sobrepor a uma das partes do processo.
O ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, já se queixou no plenário de que o governo usa argumentos considerados por ele ad terrorem – para impressionar por meio do terror – com base no impacto dos processos sobre as contas públicas.
Para a consultora econômica Zeina Latif, assim como o Congresso precisa analisar o impacto econômico dos projetos, isso precisa ser levado em consideração pelo STF nos julgamentos:
"Porque existem regras para o nosso Orçamento, porque existe o teto de gastos, a Lei de Responsabilidade Fiscal. São argumentos suficientes para o Supremo, quando decidir, entrar nesses temas e avaliar que tem consequências econômicas que prejudicam gerações futuras e que também podem forçar o Executivo a cometer um crime fiscal".
Ações somam R$ 2 trilhões
Em todas as esferas da Justiça, o total de ações contra a União somou R$ 2 trilhões no ano passado, uma redução de 8,5% ante 2019.
Os valores efetivamente pagos pela União seguem em alta desde 2013. No ano passado, foram pagos R$ 51,5 bilhões, o que corresponde a 2,6% da despesa primária total.
" É papel do STF zelar pelo cumprimento da Constituição e das leis. Em relação às instituições e regras fiscais, como a LRF, por exemplo, sempre que o STF foi acionado, ele se posicionou na direção da responsabilidade e do equilíbrio" diz o economista e professor do IDP José Roberto Afonso.
Reforma tributária 'silenciosa'
Em outra frente, especialistas alertam para o fato de que o julgamento iniciado nesta quarta ser mais um exemplo de como o STF tem atuado para fazer uma “reforma tributária silenciosa”, enquanto a do governo está travada no Congresso.
Para o advogado Gustavo Brigagão, sócio-fundador do Brigagão, Duque Estrada Advogados, o problema é mais grave por causa do plenário virtual, que se tornou regra na pandemia.
"Isso fez com que afirmássemos que há uma reforma tributária sendo feita, mas pelo STF. O Tribunal vem reformando radicalmente a jurisprudência que, por tantos anos, norteou o contribuinte na sua relação com o Fisco", observa.
Um exemplo citado é o fato de os ministros precisarem decidir a modulação dos efeitos de um julgamento de agosto do ano passado, que decidiu que é constitucional a cobrança de contribuição previdenciária sobre o terço de férias.
Falta definir a partir de quando poderão ser cobrados os valores retroativos, o que pode conflitar com uma decisão anterior do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A cobrança poderia render uma multa de R$ 80 bilhões para empresas.
No último dia da votação no plenário virtual, o ministro Luiz Fux fez um pedido de destaque para levar o caso para o julgamento presencial.
‘Impacto destruidor’
Para o tributarista Tiago Conde Teixeira, sócio do Sacha Calmon-Misabel Derzi Consultores e Advogados, esse exemplo denota a necessidade de se recalibrar o sistema do plenário virtual:
"Casos graves de alterações jurisprudenciais consolidadas, como o terço de férias, causam um impacto econômico no empresário que é destruidor. Mudar a jurisprudência é parte do jogo democrático, mas no princípio da garantia de confiança no judiciário, o STF tem que buscar preservar situações anteriores e fazer valer para dali adiante".
O advogado diz que, desde o início da pandemia, analisou 52 casos tributários de repercussão geral. Desses, 71% foram favoráveis ao Fisco contra os contribuintes. Em dez houve reversão do entendimento que a Corte considerava válido antes.
Para Roberto Duque Estrada, também sócio-fundador do Brigagão, Duque Estrada Advogados, a avaliação é de que o STF está tomando para si uma função que nunca teve, legislando sobre temas tributários pela inércia do Congresso.
"O Supremo está ocupando espaços vazios, exercendo, de forma oblíqua, a função legislativa que o Congresso deveria exercer em uma reforma tributária. E o Congresso segue parado: não se articula com a sociedade que representa, nem com os entes da federação, sendo incapaz de construir uma reforma de consenso", avalia.
O tributarista Daniel Corrêa Szelbracikowski, sócio da Advocacia Dias de Souza, observa que o quadro atual atrasa ainda mais a reforma tributária no Congresso:
"Como votar uma reforma tributária sem antes definir e fazer uma reforma administrativa? A reforma tributária está falando de obtenção de receitas, mas não posso olhar pra esse lado de receitas sem olhar para o lado das despesas. Eu só posso dimensionar as receitas se eu tiver bem dimensionadas as despesas que o governo terá no futuro".
Valedoitaúnas/Informações iG