Pescadores e pescadoras artesanais reivindicam novos rumos para a atividade no país
08 de dezembro de 2022A urgência em atualizar a Lei da Pesca é questão unânime de Norte a Sul do país
Foto: Divulgação
Entre agosto e outubro de 2022, 150 lideranças da pesca artesanal, das quatro regiões costeiras do Brasil, reuniram-se para vivenciar uma experiência única: refletir, debater e sugerir aperfeiçoamentos na legislação pesqueira do país, a Lei nº 11.959 – publicada em 2009, ela apresenta uma série de falhas e lacunas, que demandam uma revisão ampla e profunda. Essa foi a tônica das 10 oficinas do processo para a “Construção Coletiva de uma Nova Política Pesqueira Nacional” que, a partir de uma proposta participativa, escutou pescadores e pescadoras, valorizando suas práticas de trabalho e saberes tradicionais.
O resultado dos encontros, apoiados pela Oceana, determinou cinco eixos de trabalho para a proposição de uma minuta para uma nova legislação pesqueira nacional, a ser consolidada em janeiro de 2023 com as principais lideranças da pesca artesanal, em Brasília. São eles:
1. Proteção dos territórios pesqueiros da pesca artesanal;
2. Gestão pesqueira descentralizada, fundamentada em uma perspectiva local/regional no ordenamento da pesca artesanal;
3. Maior estabilidade do sistema de gestão da pesca, com fóruns de consulta e decisão estabelecidos por força de lei;
4. Criação de uma entidade administrativa mais estável para a pasta da pesca (instituto de pesca);
5. Efetiva inclusão das mulheres pescadoras na política pesqueira.
“Esse projeto deveria ter acontecido há tempos. Mas nunca houve essa oportunidade. Agora, graças à Oceana, estivemos juntos, trocando ideias com amigos e amigas de vários estados, cada um com sua modalidade de pesca, para construir uma lei mais justa”, avalia o pescador José Frutuoso Góes Filho, mais conhecido como “Zequinha”, de 77 anos de idade e 63 de ofício, representa a Colônia Z-11 e a Federação de Pesca de Santa Catarina.
Essa sensação de pertencimento também encheu de orgulho José Alberto Lima Ribeiro, o “Beto Pescador”, representante da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas, Povos e Comunidades Tradicionais Extrativistas Costeiras e Marinha (Confrem). Experiente pescador do Ceará, ele ressaltou a necessidade de reconhecer a diversidade regional da pesca no Brasil. “Vejo uma possibilidade real de termos uma lei em que nós, pescadores e pescadoras, sejamos integrantes dela, com vozes de Norte a Sul do país”.
O diretor científico da Oceana, Martin Dias, destaca: “O que mais nos impressionou foi constatar que estamos iniciando um processo histórico. Muitos grupos foram excluídos de processos decisórios e agora podem ajudar a construir políticas que dizem respeito às suas vidas”.
FORÇA REGIONAL
Em todas as regiões, pescadores e pescadoras artesanais destacaram a importância de preservar os saberes e as tradições locais e a urgência de se pensar um modelo de gestão descentralizado.
“Uma das ideias debatidas é a promoção de uma descentralização da pesca mais costeira. Um modelo de gestão focado na criação de acordos locais de pesca, com regras discutidas e aprovadas pelos atores locais. Não há uma fórmula única que se aplique à pesca artesanal brasileira, é preciso que se promova uma maior participação dos pescadores e pescadoras no desenvolvimento de soluções locais para problemas regionais”, considera Martin Dias.
Representantes dos estados do Norte do país reafirmaram que seu ofício está intimamente relacionado à proteção das águas e dos povos originários. Nesse sentido, “Mana” Célia Regina, extrativista costeira marinha de Curuçá, no Pará, explicou: “O que pode unificar as regiões do Brasil, numa proposta mais ousada de soberania alimentar, é reconhecer as especificidades dessas diversidades de pesca do país. É preciso dar garantias de conservação dos biomas e de empoderamento das famílias que vivem ao seu redor. Precisamos considerar quem são os verdadeiros gestores dessas regiões”.
MULHERES NA LIDERANÇA
Em todo o ciclo de debates, a participação feminina foi uma das tônicas que movimentaram as discussões e apontaram necessidades específicas e urgentes a serem balizadas na nova Lei da Pesca. Além de questões de gênero, também foram colocadas a importância de relacioná-las à raça e às gerações que integram toda a cadeia produtiva da pesca (da juventude à maturidade).
Dentre as principais demandas apontadas, destacaram-se a necessidade de inclusão e visibilidade da mulher pescadora; e a importância de atentar e buscar soluções para as doenças ocupacionais, a discriminação de gênero e a dificuldade de acesso aos benefícios que têm direito.
“Esse ciclo de debate foi uma contribuição fundamental da sociedade não governamental. Não estamos substituindo o poder público, mas contribuindo para melhorar a qualidade de vida da nossa comunidade artesanal, cuja Lei da Pesca não foi pensada para nós, pescadores e pescadoras, uma boa parte preta e formada por mulheres. É um encantamento construir essa proposta e pensar no meio ambiente, na relação da pesca com o turismo e nas nossas ancestralidades”, apontou a marisqueira Mariselha Lopes, do Quilombo de Bananeiras (Ilha de Maré/Bahia) e representante do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP).
Presente em todas as oficinas, a Analista de Campanha da Oceana Míriam Bozzetto testemunhou a especial contribuição das mulheres pescadoras e marisqueiras, muitas em cargos de liderança. “Elas trouxeram as suas demandas específicas para que esse futuro marco regulatório da pesca possa espelhar esse recorte de gênero, além de redimensionar o papel da mulher na pesca”; ressalta.
ESTRUTURA ESTÁVEL
As vozes dos pescadores e pescadoras artesanais solicitam também, com urgência, a criação de uma estrutura administrativa mais estável e dotada de recursos humanos e financeiros.
“Um dos problemas trazidos por pescadores e pescadoras artesanais de todo o Brasil é a dificuldade de se conseguir licenças e carteirinhas de pesca. Esse é um indicativo da falta de estrutura. A pesca precisa ter as mínimas condições de se desenvolver dentro da legalidade”, observa Martin Dias.
Além da oficina com lideranças da pesca artesanal, em Brasília, no final de janeiro, a Oceana vai estender esse processo de construção coletiva e participativa a outros segmentos, especialmente atores da pesca industrial, da academia e da sociedade civil. “Há também a necessidade de se consultar as ONGs ambientalistas e esses outros setores. Uma política efetiva deve buscar este equilíbrio entre uso e conservação dos recursos pesqueiros e dos ecossistemas marinhos”, conclui Dias.