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Pescadores artesanais vivem sob ameaça da fome durante pandemia, denuncia pescadora

09 de maio de 2020

Trabalhadores também enfrentam dificuldades para acessar auxílio emergencial liberado pelo governo

Pescadores artesanais vivem sob ameaça da fome durante pandemia, denuncia pescadoraVazamento de óleo no litoral nordestino já havia fragilizado as condições de trabalho e sobrevivência dos pescadores artesanais, que agora sofrem sem apoio para comercializar produção – Foto: Tania Rego/Agência Brasil

Sem vender o pescado nas praias, em bares e restaurantes, pescadores artesanais de todo o país têm sofrido uma drástica redução de renda durante o isolamento social, medida adotada para combater a pandemia da covid-19.

Segundo Marizélia Lopes, integrante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, os trabalhadores temem que suas famílias passem fome, já que o acesso a outros produtos essenciais está cada vez mais comprometido.

Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, ela explica que os pescadores entendem e concordam com a necessidade do isolamento social, mas sofrem com a ausência de políticas públicas neste momento.

“A maioria dos municípios e governos não têm atendido as demandas apresentadas pelos pescadores, por exemplo: o estado comprar o pescado e fornecer cestas básicas pros pescadores. O poder público é muito distante das comunidades tradicionais. Não querem nos consultar, não querem nos ouvir e não querem reconhecer que somos produtores de alimentos”, critica.

A pescadora afirma que sua categoria é responsável por 70% do pescado em todo país e reitera que, nesse momento, seria interessante que a produção fosse incluída nas cestas básicas que estão sendo entregues às populações mais vulneráveis. A ação garantiria a renda aos pescadores artesanais e a segurança alimentar de grupos mais expostos aos impactos da pandemia.

Moradora da Ilha de Maré, munícipio de Salvador (BA), Marizélia relata que muitos pescadores não possuem estrutura suficiente para acessar o aplicativo ou site da Caixa para acompanhar o recebimento do auxílio emergencial de R$ 600 disponibilizado pelo governo.

“Tem comunidades em que a grande maioria dos pescadores e pescadoras são analfabetos e tem dificuldades com esse avanço tecnológico e não tem um parente ou uma pessoa pra ajudar. Temos notícias que as pessoas estão até dividindo o emergencial”, conta ela, acrescentando que trabalhadores sem o Registro Geral de Pesca (RGP) são os mais afetados.

Confira a entrevista na íntegra

Brasil de Fato - Como está a situação dos pescadores em meio à pandemia?

Marizélia Carlos Lopes - A pandemia chega em um momento complicado para todos nós que vivemos em comunidades tradicionais. A maioria das comunidades pesqueiras no Brasil, principalmente no Nordeste, não tem garantia de políticas públicas. A situação, por exemplo, de vulnerabilidade referente às políticas de saúde e saneamento básico são bem críticas.

A gente nem se recuperou do crime ambiental que aconteceu, do derramamento de petróleo, no fim do ano passado. Não tivemos nenhuma ação emergencial pelo estado e pelo município. O que tivemos, depois de quatro meses, um auxílio emergencial que poucos foram os pescadores e pescadoras que acessaram esse direito.

Já vivíamos, anterior a essa crise do petróleo, o desmonte do ministério da Pesca. Estávamos vivendo outra crise institucional que é a negação dos direitos como o Registro Geral de Pesca (RGP). Um dos primeiros ministérios a cair foi o da Pesca [com o governo Bolsonaro], o que fez uma bagunça gigante com nossos direitos.

E a chegada de mais um agravante para as comunidades que tiveram o contato direto com o petróleo adoeceram e não tiveram nenhum trabalho sério de cuidado, sofreram impactos diretos e indiretos com a comercialização do pescado, lidaram com situação de fome e desespero na comunidade.

Não tivemos ação emergencial para tratar desses pontos. Até hoje é muita gente com problema psicológico. Até hoje não sabemos quem causou esse crime e de onde estava vindo.

E aí, quando achamos que vamos nos reerguer, chega notícia da pandemia e a ameaça aos nossos povos, que em grande maioria, principalmente no Nordeste, são negros e indígenas. Pra gente não era novidade ter que superar dificuldades que historicamente vivemos em nosso país em nome do desenvolvimento que não ouve as comunidades.

E agora, mais uma vez, estamos impedidos de vender nosso pescado. A orientação é, e nós concordamos, de que ninguém vá pras praias, pros bares e restaurantes, que são os espaços onde conseguimos vender o nosso pescado.

A questão, então, é que vocês estão conseguindo pescar mas não tem como escoar a produção?

Sim. Conseguimos penscar, e ainda bem que temos esse acesso ao mar, aos rios e aos manguezais, então o peixe para nossas famílias conseguimos garantir. A comercialização, que é pra suprir as compras do que não produzimos, estamos com muita dificuldade em nossas comunidades.

Estamos tendo dificuldade e a maioria dos municípios e estados não têm atendido as demandas apresentadas pelos pescadores, por exemplo: o estado comprar o pescado, e fornecer cestas básicas pros pescadores.

O poder público é muito distante das comunidades tradicionais. Eles sentem prazer em ficar distantes de nós. Não querem nos consultar, não querem nos ouvir e não querem reconhecer que somos produtores de alimentos, que nós ajudamos no crescimento do país. Não vê nossa produção como potência para a segurança alimentar.

Não enxergar isso faz parte do pacote de desenvolvimento que eles têm apresentado. Somos nós, das comunidades tradicionais, que estamos sendo exterminados. Cada vez mais tentam dizimar nossa cultura, nosso meio e modo de vida.

E qual a participação de vocês na produção nacional?

Mais de 70% do pescado do nosso país vem da pesca artesanal. Não existe uma estatística pesqueira e olha que estamos cobrando isso há muito tempo. A ideia da invisibilidade faz parte desse plano de morte mesmo. As áreas que estão sendo especuladas para o "crescimento" do país são as áreas de pesca.

O que nos adoece, além da possibilidade de sermos contaminados pelo coronavírus, é esse racismo. Tem um racismo muito pesado sobre nós, comunidade de pescadores e pescadoras extrativistas. Tem uma decisão que determina que não é para sermos vistos, que não é para sermos contabilizados.

Os governantes têm que perceber que o mundo parou agora e que é momento de repensar essa política de destruição das comunidades tradicionais. Quando passar [a pandemia] do coronavírus teremos que pensar na economia, mas pensar na economia traçando esse plano de morte dos moradores das comunidades tradicionais é destruir o Brasil.

Os pescadores têm conseguido acessar o auxílio emergencial?

Então, tem milhares de pescadores com carteira suspensa e cancelada, com RGP não entregue desde 2012, principalmente os mais jovens. Essas pessoas não foram contempladas no auxílio emergencial do crime do petróleo e deveriam ter sido contempladas. Agora estão com muita dificuldade porque em algumas comunidades nem energia tem.

Tem comunidades em que é mais difícil, as pessoas não têm esses celulares mais modernos. Tem comunidades em que a grande maioria dos pescadores e pescadoras são analfabetos e tem dificuldades com esse avanço tecnológico e não tem um parente ou uma pessoa pra ajudar.

Temos notícias de que as pessoas estão dividindo o emergencial. Há pessoas que não conseguem de jeito nenhum resolver pelo aplicativo, tendo que viajar dias de barco, como o pessoal do Pará e de outros cantos, para chegar na cidade e tentar resolver. E ainda tem casos que não conseguem resolver.

Não foi pensado em uma estrutura para conversar com os pescadores, explicar melhor. Estamos acompanhando, pelo Brasil todo, essa superlotação das lotéricas. Com certeza existem milhares de pescadores passando por essa situação de humilhação, de desespero.

A pessoa está na fila com a preocupação de pegar o coronavírus, levar pra casa e ainda com a preocupação se vai ou não receber o dinheiro pra levar comida pra casa. É um problema que afeta quem sempre foi menos favorecido.

Sabemos que é importante difundir pra ficar em casa. Mas como é que fica em casa sabendo que se não sair pra pescar, tentar vender, vou matar meus filhos de fome e vou morrer também porque não tem o que comer?

Não produzimos leite, as comunidades não produzem arroz, não produzem feijão. O acesso e o contato com os agricultores, como trazemos e fazemos uma articulação com movimentos como o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), se não temos as condições de logística? Não conseguimos superar isso sem a ajuda do governo.

E em relação às cestas básicas? Estão recebendo aí nos municípios da Bahia?

Em Salvador, fizemos uma articulação e conseguimos. Mas na grande maioria dos municípios não entregaram cesta básica. Nos estados do Nordeste, o pessoal tem falado da dificuldade dos pescadores terem esse apoio também, de cestas básicas e de compra do pescado. Compra do pescado não aconteceu, em lugar nenhum do Brasil. E a merenda escolar está chegando pingada. Um ou outro município que tem conseguindo fazer.

Qual a proposta tem sido feita pelos movimentos de pescadores para que continuem enfrentando a pandemia?

Estamos conversando nos estados para que o mesmo tratamento, que concordamos, que seja dado aos agricultores – de investimento, de saída e outras medidas – sejam pensados também para a pesca artesanal. Então, por exemplo, o Plano Safra comprar nossos produtos e esses produtos servirem para incluir nas cestas que serão distribuídas para outras famílias e grupos.

Nesse momento de emergência, muitas comunidades não têm selo de produção. Então estamos pedindo uma flexibilização nesse sentido. Outra coisa que os estados apresentaram é a isenção na taxa de luz. A mesma coisa de água, precisamos de água pra lavar o pescado e beneficiar nos lugares que não tem rio de água doce.

Na linha da emergência e no cuidado à saúde, estamos demandando que se trabalhe com prevenção. Então vários municípios e interiores não têm estrutura e entrarão em colapso. Se tiver uma demanda muito grande, não terão estrutura para isso.

Estamos identificando que na maioria das cidades, os cemitérios não são adequados. E temos cobrado nessa linha de medidas de proteção mesmo. Vemos que tem o cuidado com o povo da cidade, mas que não favorece nem as favelas e periferias, mas esse cuidado precisa ser estendido pra todas as pessoas.

Mesmo em um momento desse, percebemos como as dificuldades se apresentam de forma diferente. É preciso respeitar as características e diversidades do povo do Brasil. Vivemos em um país plural, mas nunca quiseram trabalhar com isso. Levando em conta as especificidades. E agora, em um momento desse de caos, qual é o plano, qual a proposta para proteger esses povos que estão em comunidades tradicionais, diferentes da cidade?

Valedoitaúnas/Informações Brasil de Fato



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