“Minha família quer que eu me case aos 14 anos com noivo rico”: os casamentos infantis na pandemia
14 de março de 2021Abeba: 'Minha família continua me pressionando para me casar' – Foto: Unicef
"Minha família me disse que eu não deveria recusar a oferta, já que a pessoa que se casaria comigo era de uma família rica", diz Abeba, de 14 anos.
Há apenas alguns meses, a mãe e os irmãos dela a pressionaram para aceitar um pretendente, se casar e, assim, ajudar a aliviar as dificuldades financeiras da família durante a pandemia de covid-19.
Abeba quer ser médica, mas em sua cidade natal, Gondar, na Etiópia, o futuro de sua educação é incerto.
Rabi, de 16 anos, ainda frequenta o ensino médio em Gusau, na Nigéria. Mas quatro de suas amigas da escola se casaram durante a pandemia, e a mãe dela acredita que ela deveria fazer o mesmo.
"Duas de nossas vizinhas vão se casar esta semana, In sha Allah (se Deus quiser). Nunca pensei que isso fosse me tocar tão cedo", diz Rabi.
E as perspectivas para essas adolescentes estão longe de ser incomuns.
De acordo com um novo relatório do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância (Unicef), já antes da pandemia esperava-se que em 10 anos 100 milhões de menores seriam obrigadas a se casar.
O órgão estima que, por causa da covid-19, esse número crescerá 10%.
O fechamento de escolas em todo o mundo, a recessão econômica e a interrupção dos serviços de apoio às famílias e crianças durante os confinamentos aumentaram a probabilidade de que, até 2030, outros 10 milhões de meninas se tornem esposas antes da idade adulta legal, diz o relatório.
"Esses números revelam que o mundo está se tornando um lugar mais difícil para as meninas", disse Nankali Maksud, conselheira sênior de Prevenção de Práticas Nocivas da Unicef.
Assunto de família
"As famílias deveriam mandar suas filhas para a escola, em vez de arranjar casamento para elas", diz Abeba.
A jovem etíope escapou de um casamento arranjado porque conseguiu que seu pai a apoiasse.
"Minha mãe e meus irmãos continuaram me pressionando para casar. Eles pararam quando receberam aconselhamento. As autoridades fizeram eles mudarem de ideia".
Para Rabi (nome fictício, pois ela não quer ser identificada ou fotografada), a ameaça continua presente.
Muitas meninas do povoado nômade Fulani não retornarão à escola após o confinamento e muitas já se casaram – Foto: Getty Images
Ela mora em uma área rural em Damba, um assentamento Hausa-Fulani no norte da Nigéria, onde mulheres jovens se casam assim que têm um bom pretendente.
"Para mim, tudo começou durante o confinamento, quando meus irmãos mais novos começaram a brincar de soletrar e eu decidi me juntar a eles", diz a jovem de 16 anos.
A mãe dela ficou brava porque Rabi demonstrou no jogo que não havia aprendido o suficiente na escola.
"Ela me disse: 'Você já perdeu muito tempo indo para a escola! Olha, seus irmãos mais novos têm que te ensinar!'".
A mãe continuou: "A esta altura, todas as meninas do seu ano escolar estão casadas. Vou pedir a Shafi'u (pretendente de Rabi) que mande os pais dele pedirem oficialmente sua mão em casamento".
As amigas Habiba, Mansura, Asmau e Raliya se casaram no ano passado para amenizar as dificuldades financeiras de suas famílias.
Organizações de direitos das mulheres em Bangladesh lutam há anos contra o casamento infantil – Foto: Getty Images
Uma amiga da mãe de Rabi afirma não entender a relutância da menina: "O que mais os pais precisam esperar? Não posso pagar os estudos da minha filha. O casamento é uma oportunidade para uma menina se estabelecer e ter menos pessoas em casa".
Uma tendência reversível
Desde 2011, o número de meninas casadas antes da idade adulta legal caiu 15% no geral, mas agora esse progresso está ameaçado como resultado da pandemia, diz a Unicef.
"Estávamos progredindo globalmente na redução dos casamentos infantis. Ainda não era o suficiente para atingir nosso objetivo de eliminá-los, mas estávamos indo na direção certa", diz Maksud.
"Mas a covid-19 quebrou essa trajetória. A vida de meninas adolescentes em todo o mundo piorou".
No entanto, existem algumas tendências positivas refletidas no relatório: evidências de campo mostram que, onde a intervenção é possível, os casamentos e uniões infantis podem acabar.
Embora o casamento infantil continue sendo uma prática comum em algumas partes do mundo, está se tornando menos normal onde as medidas apropriadas são tomadas.
E o aumento estimado como resultado da pandemia pode ser revertido, dizem os especialistas.
"Recebi nove pedidos de casamento"
Maram foi para a Jordânia como refugiada síria há alguns anos – Foto: Unicef
Desde os 14 anos recebi nove propostas de casamento", diz Maram, que se mudou da Síria para a Jordânia há alguns anos e agora mora em Zaatari, um campo de refugiados perto da fronteira.
"Nossa comunidade nos pressionou muito, mas minha mãe e meu pai me apoiaram", conta.
"Minha mãe é o meu maior apoio. Ela me diz que ainda sou muito jovem e que ainda não entendo o que é o casamento".
Em vez disso, Maram teve a oportunidade de ir à escola e jogar futebol, uma de suas paixões.
"Eu conheço meninas que se casaram e abandonaram a escola. Elas têm que deixar suas famílias para trás e morar com o marido e sogros. Essas meninas não estão prontas para uma mudança tão grande", diz ela.
"Minhas duas amigas que se casaram agora estão arrependidas. Eles estão chocadas com sua nova vida e se sentem privadas de direitos.
Os casamentos infantis podem ser evitados?
As escolas costumam ser os lugares mais seguros para as menores de idade – Foto: Unicef
Os especialistas acreditam que os casamentos infantis podem ser evitados com as intervenções sociais corretas.
"O exemplo perfeito é a Índia. Nos últimos 30 anos, o país teve grandes programas nacionais de transferência de renda", diz Maksud.
Como resultado, as famílias indianas receberam uma compensação financeira por não casarem suas filhas menores de idade.
Além disso, embora o casamento não possa ser evitado, atrasá-lo traz benefícios para a comunidade.
"Isso é muito importante porque permite que essas meninas terminem a escola, tenham outras opções na vida, desenvolvam habilidades e, como resultado, temos mais probabilidade de interromper o ciclo da pobreza", acrescenta Maksud.
"Me pagam para eu esperar para me casar"
Savita (à direita) conversando com assistente social – Foto: Unicef
Savita acha que tem 16 ou 17 anos. Ela não sabe exatamente sua própria idade. Embora seus documentos de identidade indiquem que ela tem 14 anos, ela diz que o dado não está correto.
Ela mora em Uttar Pradesh, no norte da Índia, com seus pais, quatro irmãs e dois irmãos.
Savita diz que nunca foi à escola, por isso não sabe ler nem escrever.
Durante o confinamento, sua família recebeu um ganho extra, mas ainda a pressionou para que ela se casasse. Ela havia visto sua irmã se casar ainda criança e relutou em seguir seus passos.
Quando as autoridades locais conseguiram impedir o casamento há algumas semanas, Savita ficou aliviada.
Ofereceram a ela a inclusão em um programa de transferência de renda – caso ela adiasse o casamento até os 18 anos, receberia apoio financeiro até lá.
Nankali Maksud, da Unicef, diz que há três elementos-chave que precisam ser abordados para reverter a tendência das meninas serem forçadas a se casar por causa da pandemia.
"Primeiro, você precisa levar as meninas de volta à escola com a maior segurança possível", diz Maksud, ou dar a elas a oportunidade de desenvolver habilidades, como aprender um ofício ou profissão.
"O impacto econômico da covid-19 nas famílias pobres também deve ser abordado, de modo que a carga financeira não seja aliviada com a venda ou casamento das meninas".
A conselheira da Unicef também destaca que a gravidez na adolescência é um importante fator para o casamento das meninas.
"Portanto, é vital que os serviços de saúde sexual e reprodutiva sejam retomados, para que as meninas possam acessá-los e ter a informação e assistência que precisam para tomar as decisões certas".
"Eu ajudei a salvar minha irmã do casamento"
Minara, de 18 anos, ajuda meninas mais novas em sua comunidade – Foto: Unicef
Minara se tornou uma ativista contra o casamento infantil em sua comunidade depois de entrar em um clube local para educação de adolescentes em Kalmakanda, no norte de Bangladesh.
O que a adolescente de Bangladesh de 18 anos não sabia na época era que seu treinamento a ajudaria a salvar sua própria irmã mais nova, Rita.
"A pandemia tem sido difícil para minha família", diz Minara, que mora com os pais e os dois irmãos em uma casa com telhado de palha.
O pai dela perdeu o emprego durante o confinamento e estava desesperado por dinheiro.
Minara descobriu que um vizinho se ofereceu para se casar com a irmã dela, dizendo que queria ajudar a aliviar o problema financeiro da família.
Este mesmo homem assediava Rita antes da pandemia chegar, diz ela.
Com a ajuda das colegas do clube, Minara ligou para uma linha de apoio e conseguiu impedir o casamento, embora não tenha certeza por quanto tempo.
Se esta pandemia continuar, os pais podem se sentir pressionados a casar suas filhas antes de elas completarem 18 anos.
"O acompanhamento está ajudando"
Abeda (à esquerda) e Mekdes (ao centro), com seu amigo Wude, conseguiram evitar um casamento precoce – Foto: Unicef
Na Etiópia, Abeba espera que suas amigas continuem indo à escola e evitem se casar antes de se formar.
Mekdes, de 14 anos, sonha em ser engenheira.
"Estando em casa (confinada), ouvi meus pais falarem sobre se casar com um garoto que eu nem conhecia", disse ela à BBC.
"Eu disse a eles que não queria me casar e que queria estudar, mas eles não me ouviram".
"Esperei até a nossa escola reabrir e contei tudo ao diretor da escola", conta a adolescente.
"Ela informou as autoridades locais e eles aconselharam meus pais a não fazerem isso."
Por enquanto, os pais prometeram não casá-la até que ela complete 18 anos.
"O serviço de aconselhamento está ajudando muito em nossa comunidade. Agora, existe até um sistema para a polícia processar os pais se eles insistirem em nos casar".
Valedoitaúnas/Informações BBC