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‘Fui vítima de tráfico humano e passei nove meses sendo abusada nos EUA’

20 de setembro de 2022

Luana Maciel embarcou com as duas filhas para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor após anos de violência doméstica e abuso sexual em Brasília. Mas acabou vítima de um golpe, se viu em cárcere privado e novamente em uma rotina de estupros. Hoje, aos 39 anos, ela estuda direito criminal e luta para ajudar outras mulheres que passam pelo mesmo que viveu um dia

‘Fui vítima de tráfico humano e passei nove meses sendo abusada nos EUA’Luana Maciel foi vítima de tráfico humano e hoje estuda direito para ajudar outras vítimas de violência – Foto: Arquivo Pessoal

“Nasci em Brasília e fui criada no entorno do Distrito Federal. Na infância, eu e minha irmã, dez anos mais velha, vivemos muita situação de violência doméstica e abuso. Minha mãe foi diagnosticada com transtorno de personalidade narcisista e meu pai com transtorno bipolar. Eles nos agrediam demais, a convivência não era nada fácil. Minha irmã passou a viver com nossos tios em uma época e eu muitas vezes era obrigada a correr para casa dos vizinhos, em busca de socorro.

Fui molestada dos seis aos 14 anos pelo marido de uma amiga da minha mãe que me ofereceu abrigo. Quando eu contava para minha mãe ela não acreditava, dizia que era tudo mentira minha. Eu sempre saía em desvantagem, era a filha ‘rebelde’ na visão de terceiros. Cheguei ao ponto de passar dias em um orelhão, ligando para várias pessoas e perguntado quem poderia assinar a minha matrícula na escola porque minha mãe não dava a mínima se eu iria estudar ou não.

Aos 17 anos, já muito atrasada nos estudos, passei a frequentar o supletivo. Uma noite, voltando da aula, fui estuprada. Por vergonha e medo, não contei a ninguém o que aconteceu. Mas três meses depois, descobri que estava grávida. Desabafei com a mãe de uma amiga, que se compadeceu da minha situação e me levou para fazer aborto em uma clínica clandestina. Isso quase me levou à morte. Tive muitas complicações e fui parar no hospital para fazer uma cirurgia. E o que eu mais temia aconteceu.

Minha mãe foi chamada ao hospital e fui agredida por ela. Até policiais foram chamados para conter a briga e sem o mínimo de treinamento ou discrição, me humilharam na frente de todos. A segurança do hospital permitiu que minha mãe me agredisse fisicamente, todos diziam que era "uma safada e vagabunda por ter engravidado".

Depois de tudo isso, meio sem rumo na vida, passei a frequentar a igreja da minha mãe, imaginando que só estava sofrendo assim na vida porque eu não fazia parte da religião dela. Coloquei na minha cabeça que se eu me casasse e tivesse minha própria família, talvez não teria mais problemas e estaria protegida.

Me casei aos 17 anos com um homem da igreja que, aos olhos de todos, parecia a melhor pessoa do mundo, mas na verdade era extremamente abusivo e tóxico. Ele me isolou da minha família, dos amigos e de tudo que pudesse. As brigas e os escândalos eram tantos que acabei ficando com vergonha de ir aos lugares que frequentava. Na época, eu fazia faculdade de Direito e todos os dias quando chegava da aula era agredida por ele e acusada de traição.

Me vi impossibilitada de terminar o curso, tamanhas agressões. Cheguei a mentir no meu trabalho, certa vez, dizendo que fui vítima de assalto, porque meu marido me deu um soco tão forte na boca que partiu o meu lábio. Busquei pessoas que se diziam ‘amigas’ para tentar conversar, mas me vi sozinha. 'Você está nesse relacionamento porque quer’ ou ‘você gosta mesmo é de apanhar’ era o que eu ouvia da maioria. Só pensava em morrer todos os dias.

Tive duas filhas com meu então marido. Minha primogênita nasceu em junho de 2002 e a caçula em fevereiro de 2010. Fiquei casada por mais de dez anos, nem sei como aguentei. Até que uma tia descobriu o que eu passava e nos levou para morar em um trailler no quintal da casa dela.

Nesse período, já em processo de divórcio, consegui um trabalho em uma empresa que presta serviços para a Embaixada dos Estados Unidos. Parecia o emprego dos sonhos. Lá eu trabalhava pegando digitais e tirando fotos das pessoas que iam tirar o visto.

Em 2013, acabei reencontrando uma amiga de infância que também prestava serviços para uma das empresas que trabalhavam para a Embaixada. Nos reaproximamos e ela me apresentou um gerente que, ao saber da minha história, me fez uma proposta de trabalho e mudança para os Estados Unidos, onde eu poderia trabalhar e estudar, com o visto de negócios. Achei que, finalmente, a vida estava me dando uma oportunidade de ser feliz e dar uma vida melhor para minhas meninas.

"Se eu não atendia às expectativas dos traficantes, não nos alimentavam. Famintas, pegávamos restos de comida jogados em sacos de lixo no porão".

Cheguei com minhas filhas nos Estados Unidos em 2014, aos 29 anos. Fomos morar em Louisville, no estado do Kentucky. Chegando lá, percebi que a proposta de emprego era uma mentira. Fomos levadas ao porão de uma casa, vigiada 24 horas. Lá fui obrigada a fazer serviços domésticos e sexuais. No desespero, para proteger minhas filhas menores, eu fazia tudo o que me era ordenado. Vivia em desespero.

Se alguma vez, por cansaço ou depressão, eu não atendia às expectativas dos traficantes, eles não nos alimentavam. Famintas, muitas vezes pegávamos restos de comida jogados em sacos de lixo no porão.

Por várias vezes, eu esperava que um dos traficantes fosse dormir e tentava fazer algum contato, sempre em vão. Uma vez, em uma única chance, consegui ligar para o consulado brasileiro e consegui deixar metade de uma mensagem de voz para eles, que era a única opção que eu tinha disponível, mas o traficante acabou acordando e me flagrou. Perdi o que eu achava que era a minha única chance de ser salva daquele inferno.

O traficante fazia as coisas parecerem normais.  Ele nos permitia fazer chamada para alguns familiares, mas a conversa era, rigorosamente, monitorada por eles. E só fazia isso para não levantar suspeitas. Certa vez, a polícia chegou a ser chamada por vizinhos, que entranhavam a movimentação estranha da casa, mas os policiais não questionaram por que o traficante falava por nós e o por que ele era quem tinha posse dos nossos passaportes.

As ameaças eram constantes, principalmente, contra a vida das crianças. Um verdadeiro martírio. Foram nove longos meses presas em cárcere privado. Até que um dia todos os caras que vigiavam a casa foram para um funeral e tivemos a chance de fugir. Éramos em nove prisioneiros – sete crianças e dois adultos ali.

Fora da casa fiquei completamente desorientada. Corri muito com minhas filhas. Acabei perdendo 35% da minha visão por falta de tratamento adequado pelos maus tratos no cativeiro. A casa era toda fechada e não entrava luz do sol.

Quando saí de lá prestei queixa na polícia. Mas as autoridades americanas não nos ofereceram nenhum tipo de ajuda. Cheguei a morar nas calçadas com minhas duas filhas, junto com os moradores de rua, até ir para um abrigo e depois ser ajudada pelo pessoal da igreja Catholic Charities.

De lá, me mudei com as meninas de Louisville para Indiana. Lá também moramos na rua, passando fome e frio. Depois de muita insistência, acabei descobrindo a Rede Nacional de Tráfico Humano nos Estados Unidos, onde consegui apoio. A instituição me ajudou com moradia e a regularização do meu status imigratório. Meu caso foi fechado pela polícia local que alegava ‘pouca evidência’.

Por fim, depois de quase oito anos, o caso foi reaberto, mas o traficante não foi preso até hoje. Já ouvi dizer que ele traficou mais três brasileiras e ainda está por aí atuando com sua quadrilha. Por alguma razão que desconheço, todas as vezes que o caso vai para a promotoria, volta para investigação. Tenho lutado muito e perturbado diferentes autoridades para processar essas pessoas.

A violência doméstica domina a mulher de várias formas, fazendo com que ela não encontre muitas opções para sair de um relacionamento abusivo. Muitas vezes, as correntes são mais psicológicas do que físicas. Já em relação ao tráfico humano, ouvi muitos comentários de pessoas que não entendem como a escravidão moderna funciona. Os traficantes usam dos sonhos das pessoas de obterem uma vida melhor ou de sair de situações de risco, eles usam da vulnerabilidade e do medo para fazer com que elas se tornem suas escravas domésticas e sexuais.

Tráfico de pessoas não é somente realizado por um coiote que atravessa pessoas pela froteira de um país para o outro. Urge-se a educação em escolas, educação dos militares e, principalmente, por ser um crime que ocorre praticamente todos os dias entre fronteiras internacionais e, mais que urgente, espero que sejam feitas campanhas dentro da carreira diplomática para quebrar o tabu de que pessoas traficadas na mordenidade são pessoas presas a correntes.

Nunca mais voltei ao Brasil. Minha mãe veio nos visitar em 2020. Meu pai está com leucemia e eu ainda não tenho permissão de viagem para ir visitá-lo. Estou aguardando meus documentos se legalizarem. Sigo no aguardo pela permissão de viagem e o meu ‘green card’ que deve sair até julho de 2023, já que agora me casei com um homem americano e, por direito, posso ter os documentos americanos.

Hoje sou uma estudante sênior e, em breve, serei bacharel em direito criminal. Sigo morando na cidade de Jeffersonville, no estado de Indiana, com minhas duas filhas, que acabaram de completar 20 e 12 anos de idade. A caçula é estudante e a mais velha já trabalha como recrutadora no RH de uma grande empresa americana. Me casei novamente, há dois anos, e consegui comprar uma casa. Passamos por muitas coisas juntas, as três, sempre unidas.

Estou agora focada em me especializar com foco em resolução de conflitos, sou voluntária na advocacia em defesa das mulheres imigrantes contra a violência doméstica e contra o tráfico humano. Me tornei uma sobrevivente de tráfico humano e da violência contra a mulher em vários aspectos, por isso tenho sede de justiça. Acredito que a educação em violência doméstica e em tráfico de pessoas ajudaria muito a prevenir e a fazer justiça para o que muitos por ai fora ousam dizer que foi ‘uma escolha’. Eu não escolhi ser traficada e violentada".

Valedoitaúnas (Marie Claire)



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