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Estrangeiros contratados por D. Pedro I foram criticados por brutalidade contra os primeiros brasileiros

04 de setembro de 2022

Especialistas defendem que os britânicos vinham ao Brasil com interesses mercenários

Estrangeiros contratados por D. Pedro I foram criticados por brutalidade contra os primeiros brasileirosMilitares britânicos agiram com brutalidade durante processo de independência do Brasil Arte – Foto: Agência O Globo

Um contratempo interrompeu John Pascoe Grenfell quando o oficial inglês ditava um relatório ao Comando Naval no Rio sobre as operações da frota brasileira na Guerra da Cisplatina (atual Uruguai), em 1826. Dias depois, justificaria o atraso: a bordo da nau “Caboclo”, ele fora obrigado a interromper o relato após levar um tiro que o faria perder a mão direita.

Eram assim, relatam especialistas no tema, os militares britânicos que combateram, remunerados, sob as ordens de D. Pedro I nos primeiros anos após a declaração de Independência do Brasil: corajosos, impassíveis, experientes e ambiciosos.

O historiador Nélio Galsky, que em 2006 apresentou na UFF a tese de mestrado “Mercenários ou libertários: as motivações para o engajamento do Almirante Cochrane e seu grupo nas lutas da Independência do Brasil”, defende que o país não teria os atuais contornos sem a ação dos britânicos, especialmente nas costas da nova nação, com uma Marinha ainda em formação e focos de resistência à Corte do Rio de Janeiro concentrados nas províncias do Nordeste e do Norte.

Autoridades navais e outras correntes da historiografia, no entanto, discordam. E os enxergam como piratas regulamentados, cujo interesse central era o de enriquecer com a prática do corso contra navios e bens dos adversários vencidos.

Encabeçados pelo escocês Thomas Cochrane, veteranos da Royal Navy e da Companhia das Índias migraram para a América Latina interessados em participar das lutas de emancipação contra as tropas portuguesas e espanholas. O motivo era menos idealista do que prático: eles se opunham às medidas tomadas pelo governo britânico, após as Guerras Napoleônicas (1803-1815), para enquadrar os oficiais da Marinha, avessos à hierarquia e disciplina, entre elas justamente o fim da prática do corso.

Brasil seria 40% menor

Nomes como Cochrane, o Comandante Grenfell e o capitão John Taylor foram decisivos nas Guerras de Independência, entre 1822 e 1824, aponta Galsky, especialmente contra as resistências nas então províncias da Bahia, Maranhão e Pará, com guarnições fiéis a Lisboa. Sem eles, alguns historiadores preveem que o Brasil poderia ter perdido até 40% do atual território, cindido por províncias interessadas em manter o vínculo com Portugal.

“No Chile, onde combateu contra os espanhóis, Cochrane dá nome a um navio. Aqui, nada. A Marinha nunca batizou um de seus navios com nomes dos oficiais britânicos. E eles foram tão heróis na Cisplatina e na unificação do Brasil, por exemplo, quanto o Duque de Caxias (patrono do Exército brasileiro) e o Almirante Tamandaré (patrono da Marinha brasileira)”, lamenta Nélio Galsky.

A comemoração do Bicentenário da Independência, crê o historiador, oferece oportunidade para rever esta percepção. Ele não exclui em seu raciocínio o fato de que os britânicos tinham interesse em ficar com os bens inimigos, razão pela qual são classificados como mercenários, mas sustenta que alguns deles, como John Taylor e o Comodoro Bartholomew Hayden, irlandês, por exemplo, acabaram constituindo família no Brasil. Grenfell foi inclusive representante diplomático do país no Reino Unido. E Cochrane recebeu da monarquia o título de Marquês do Maranhão.

Embora Joaquim Marques Lisboa, o Marquês de Tamandaré, tenha iniciado a carreira como oficial da fragata Niterói, comandada à época por John Taylor, na qual participou diretamente dos conflitos contra a frota portuguesa em 1823, a Marinha trata com cautela o papel dos britânicos na formação da doutrina naval nacional. Procurado, o Centro de Comunicação Social da força informou que não abordaria o assunto.

Ex-diretor do Patrimônio Histórico da Marinha, Armando de Senna Bittencourt, almirante reformado, reconhece que os britânicos eram “grandes marinheiros”. E que supriram uma carência das forças brasileiras, mas que não vieram ao Brasil por patriotismo:

“Não há dúvida de que eram mercenários. Saíram pelo mundo com propósito de ganhar dinheiro. A Marinha reconhece a importância deles, mas não incentiva uma adoração por Cochrane, por exemplo, como a para o Tamandaré, quase deificado na frota”, disse Armando de Senna.

A visão crítica, que inclui narrativas sobre o caráter especialmente violento das ações dos britânicos, encontrou acolhida em correntes da historiografia. O professor Nelson Werneck Sodré (1911-1999), em “Formação histórica do Brasil”, escreveu que, nos conflitos após o Grito do Ipiranga, coube à Marinha, então improvisada, reprimir as “zonas insubmissas, sob comando, inclusive, de expedições punitivas de chefes estrangeiros, autênticos mercenários, cuja brutalidade nas ações policiais deixa sulco profundo na história da nossa gente”.

Entre os argumentos que oferece para a revisão desses conceitos, Nélio Galsky destacou que, apesar dos interesses financeiros, os oficiais britânicos investiram em um forte laço de fidelidade com os comandados. O historiador citou um episódio no Chile, no qual um marinheiro caiu no mar e Cochrane mergulhou para salvá-lo.

“Na era do corso, em que os navios passavam muitos meses navegando, os oficiais precisavam criar laços com a tripulação. Uma das razões era evitar o motim, mas de fato havia essa forte relação entre eles”, diz.

Blefe em São Luís

Sem o Almirante Cochrane, afirma Galsky, o Brasil não teria conquistado as províncias do Maranhão e do Pará. No Maranhão, ele usou o blefe como tática em julho de 1823. Cercou o porto e alertou que aguardava a chegada de mais 20 navios, que bombardeariam São Luís se as autoridades não se rendessem à frota imperial. Na dúvida, o governo local jogou a toalha, ato decisivo para o fim da resistência local.

O descompromisso dos oficiais britânicos com suas origens também foi demonstrada, pontua Galsky, em episódios singulares. Nas campanhas do Chile e do Peru, por exemplo, eles comandaram ataques a navios ingleses que levavam alimentos para tropas espanholas. E na Guerra da Cisplatina, enfrentaram uma frota argentina reforçada por marinheiros e oficiais, também britânicos, contratados pelo país vizinho.

“Era, naquela ocasião (e com oficiais britânicos lutando dos dois lados), quase uma guerra civil”, brinca o historiador.

Ao final dos embates, a fatura era cobrada. Enquanto os países da Europa Ocidental firmavam, em raros tempos de paz no Velho Continente, novos acordos legais para enquadrar suas Marinhas, os veteranos britânicos compreenderam a instabilidade no cenário latino-americano como oportunidade para fazer negócios, defendendo inclusive o direito a saquear as suas presas. Alguns, relatam os historiadores, chegaram a firmar contratos específicos antes de iniciar combates. Duzentos anos depois, seus legados para o país que surgia segue em saudável discussão.

Valedoitaúnas (O GLOBO)



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