Home - Política - CCJ da Câmara dá aval a projeto que altera Estatuto...

CCJ da Câmara dá aval a projeto que altera Estatuto do Índio e dificulta demarcação de terras

24 de junho de 2021

Texto fixa marco temporal e proíbe ampliação de terras já delimitadas. Se virar lei, União poderá retomar áreas quando houver 'alteração dos traços culturais'; projeto vai a plenário

CCJ da Câmara dá aval a projeto que altera Estatuto do Índio e dificulta demarcação de terrasDeputados discursaram durante sessão deliberativa sobre a demarcação das terras indígenas – Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados deu aval nesta quarta-feira (23) ao texto principal do projeto de lei que altera o Estatuto do Índio e dificulta a demarcação de terras indígenas.

Nesta quinta-feira, os deputados da comissão deverão analisar os destaques (sugestões de alteração no parecer, apresentado pelo relator, deputado Arthur Maia, do DEM-BA). Finalizada essa etapa, a proposta estará pronta para ir ao plenário da Casa.

A CCJ só analisa se a matéria está de acordo com a Constituição. O mérito da proposta, ou seja, o conteúdo propriamente dito, foi debatido em outras comissões temáticas.

A proposta já foi rejeitada pela Comissão de Direitos Humanos e aprovada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural. Com a votação na CCJ, o texto vai ao plenário e, se aprovado, segue para o Senado.

Entre outros pontos, o projeto flexibiliza o uso exclusivo de terras pelas comunidades e permite à União retomar áreas reservadas em caso de alterações de traços culturais da comunidade (leia mais abaixo).

O texto também:

  • cria um “marco temporal” para as terras consideradas "tradicionalmente ocupadas por indígenas", exigindo a presença física dos índios em 5 de outubro de 1988;
  • permite contrato de cooperação entre índios e não índios para atividades econômicas;
  • possibilita contato com povos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”.

Protestos

Polêmico, o texto provocou protestos de indígenas em frente à Câmara dos Deputados. A reunião da CCJ, marcada para esta terça (22), foi cancelada depois de um conflito entre policiais legislativos e militares com um grupo de indígenas que protestava do lado de fora da Câmara.

Pelo menos cinco pessoas ficaram feridas e o esquema de segurança da Casa foi reforçado.

Segundo a Câmara dos Deputados, os participantes do protesto tentaram invadir o Anexo II. A Casa afirmou que um policial legislativo e um servidor administrativo da área foram atingidos por flechas na perna e no tórax. Ambos foram levados a um hospital particular.

Um policial militar também levou uma flechada no pé e, segundo a corporação, recebeu atendimento médico no local. A Câmara afirma que "não houve disparo de tiros ou qualquer tipo de agressão física contra os manifestantes".

CCJ da Câmara dá aval a projeto que altera Estatuto do Índio e dificulta demarcação de terrasAo menos 5 pessoas ficaram feridas numa batalha entre indígenas e policiais em Brasília – Foto: Reprodução

No entanto, a versão é diferente da apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Segundo a entidade, um jovem de 26 anos, do povo Sapará, de Roraima, foi atingido por balas de borracha no torso e bombas de efeito moral nas costas. Levado para o Hospital de Base, ele foi liberado no começo da noite.

Também ficaram feridos uma senhora do povo Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, atingida por estilhaços de bomba e um indígena do povo Xokleng, da Região Sul, atingido pelo impacto de uma bomba de efeito moral. O grupo afirma que realizava uma "marcha pacífica" e foi recebido com bombas e spray de pimenta.

Nesta quarta, com a manutenção do texto em pauta, os indígenas voltaram a se manifestar em frente à entrada de um dos anexos da Câmara.

Relatório

O projeto original foi apresentado em 2007. A proposta previa uma alteração do Estatuto do Índio para determinar que a demarcação das terras indígenas, feita hoje por ato da Fundação Nacional do Índio (Funai), fosse submetida à apreciação do Congresso.

No entanto, o relator, deputado Arthur Maia (DEM-BA), rejeitou a proposta original em seu parecer, apresentado em 12 de maio. Ele considerou a reação inicial inconstitucional, mas apresentou um novo texto com base em outros projetos anexados ao primeiro.

Além de alterar o Estatuto do Índio, o relatório apresentado regulamenta um dispositivo da Constituição que trata das terras demarcadas. Segundo Maia, o parecer tem como objetivo consolidar entendimentos sobre o tema já fixados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

“O substitutivo que apresentamos busca consolidar em lei o entendimento amplamente majoritário, em garantia da segurança jurídica”, diz no relatório.

Contudo, segundo nota da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a justificativa do relator "não procede", porque a Corte Constitucional nunca fixou tese sobre a matéria indígena.

“Tanto é verdade que em 2019 (ainda pendente de julgamento) foi conhecida a repercussão geral da matéria indígena. Então, até que o STF julgue esse processo de caráter objetivo e fixe uma tese vinculante, é falácia o argumento do relator", diz a nota.

Segundo Maia, o objetivo do projeto é conceder aos indígenas condições jurídicas para que “tenham diferentes graus de interação com o restante da sociedade exercendo os mais diversos labores, dentro e fora de suas terras, sem que, é claro, deixem de ser indígenas”.

Conforme o parecer aprovado, o marco temporal para delimitar o que são terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são aquelas que, na data da promulgação da Constituição — isto é, 5 de outubro de 1988 — eram:

  • por eles habitadas em caráter permanente;
  • utilizadas para suas atividades produtivas;
  • imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
  • necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Segundo o parecer, a interrupção da posse indígena ocorrida antes de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada. A exceção é para caso de conflito de posse no período.

Uma das críticas para o dispositivo, segundo entidades ligadas aos direitos dos indígenas, é que a Constituição funciona retroativamente, o que resguarda os direitos territoriais violados antes de 1988.

Outra mudança polêmica, criticada por quem discorda do texto, é a possibilidade de validar títulos de propriedade ou posse em área das comunidades indígenas. Neste caso, a desocupação será indenizada pelo Estado.

Críticos alegam que o dispositivo é inconstitucional, uma vez que a Carta Magna atualmente não reconhece atos para ocupação, domínio e posse de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas.

O texto também proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas.

Nesse caso, o relator cita um julgamento de 2009 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que proibiu a ampliação da área como uma das 19 regras estabelecidas.

Quatro anos depois, porém, a própria Corte confirmou que o entendimento não tem efeito vinculante e não vale para todos os casos.

Ainda segundo a proposta, caso haja alteração nos traços culturais da comunidade, as áreas indígenas reservadas podem ser retomadas pela União para o "interesse público ou social" ou ainda destinar ao Programa Nacional de Reforma Agrária, com lotes "preferencialmente" a indígenas.

A Constituição diz que compete à União a atividade de demarcar terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, porém afirma que elas são de sua "posse permanente". Além disso, determina o uso "exclusivo" dos indígenas das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Segundo o parecer, o usufruto dos índios não abrange, por exemplo, o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, a garimpagem, a lavra de riquezas minerais e "áreas cuja ocupação atenda a relevante interesse público da União".

Outra flexibilidade do uso das terras exclusivamente pelos indígenas é um dispositivo que admite a cooperação e contratação de terceiros (não indígenas) para a realização de atividades econômicas. O texto coloca algumas travas que devem ser cumpridas, por exemplo:

  • a atividade deve gerar benefícios para a comunidade;
  • a posse dos indígenas deve ser mantida sobre a terra;
  • a comunidade precisa aprovar o contrato;
  • os contratos devem ser registrados pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

A Assessoria Jurídica do Cimi também questionou a alteração.

"Como poderia haver cooperação se as áreas indígenas são de usufruto exclusivo? Daí que essa passagem é de plano inconstitucional, pois afronta diretamente o texto da Carta de 1988, já que essa cooperação entre índio e não índios foi repudiada pelo constituinte”, diz a nota.

Ainda segundo a avaliação da associação, a aprovação do projeto implicaria em "retrocessos inimagináveis" para os povos indígenas. "O direito indígena é cláusula pétrea e não se submete a reformas legislativas", diz a nota.

Em outro trecho, o relatório prevê ainda o contato em caso de indígenas isolados “para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”.

Segundo nota técnica do Instituto Socioambiental, também divulgada nesta semana, o dispositivo “converte a política de não-contato a uma política de ‘contato evitado’”.

“O Estado brasileiro, desde a redemocratização, estabeleceu destacada política de não contato com povos indígenas que vivem em isolamento voluntário”, diz a nota.

“[A mudança no relatório é] hipótese inédita e demasiadamente ampla, que pode gerar ameaças aos povos indígenas em isolamento”.

Debates

Partidos de oposição obstruíram a votação. A reunião estava marcada para 9h, mas só foi aberta às 10h10. A discussão da matéria, fase que precede a votação, foi aberta apenas às 14h17.

A deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), única representante indígena no Congresso Nacional, disse que a discussão do projeto durante a pandemia “é desnecessária”.

Segundo ela, o projeto não defende os direitos e a independência dos indígenas, como pregaram os apoiadores do texto.

"A quem queremos enganar aqui que estamos defendendo interesses dos povos indígenas? Que os povos indígenas querem ver suas terras retalhadas? Os povos indígenas não, que estão lá fora protestando, e estão nas suas comunidades”, disse.

"Aí a gente vê a crueldade, porque os povos indígenas não estão participando, não tem voz, representação. Só tem a mim. Pena, é uma dó, é uma tristeza muito grande. A gente vai manter firme, porque a gente sabe que os direitos estão a favor dos direitos indígenas’, acrescentou a deputada.

A deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS) lembrou que durante o governo do presidente Jair Bolsonaro a violência contra os indígenas aumentou.

“Não passarão a boiada. Não passarão a boiada. 521 anos de resistência. Temos muito a aprender com os indígenas brasileiros. Sabemos que na situação do governo Bolsonaro aumentou a violência contra indígenas. Mas nós também estamos lutando aqui pelas lideranças, que tanto lutaram e foram assassinadas por defender o meio ambiente e sua ancestralidade”, declarou.

A deputada Alê Silva (PSL-MG), defensora do projeto, chamou as comunidades indígenas de “zoológicos humanos” e disse que o projeto promove a independência dos povos.

“E se o índio quiser sair do mato e cultivar suas terras e produzir e ficar rico? E se o índio quiser sim ser capitalista liberal e usar máquinas. O índio não quer mais ser parte desse zoológico humano em que foram transformadas as comunidades indígenas por ongs, sustentado por dinheiro de governo esquerdistas”, declarou.

Já o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) afirmou que o texto permitirá aos índios fazer contratos e parcerias com vistas ao seu desenvolvimento.

“O problema não é falta de terras, é o impeditivo que o Congresso e a Constituição criam para que os próprios indígenas tenham liberdade para promover desenvolvimento econômico e social”, disse.

Valedoitaúnas/Informações G1



banner
banner