Brasileiro já adianta até 40% do salário para pagamento de dívidas
31 de julho de 2022Serviço é oferecido por empresas, que cobram taxa para saque, mas não há incidência de juros. Especialistas alertam que opção não deve se tornar um hábito
Brasileiro já recorre ao salário do mês seguinte para pagar dívida – Foto: FreePik
A combinação de orçamento apertado, multiplicação de boletos e inflação de dois dígitos levou o brasileiro a recorrer ao salário do mês seguinte para pagar a dívida de hoje. Ganha espaço entre as empresas a procura pelo serviço de antecipação de parte do salário para fazer frente a despesas emergenciais, gastos do mês, como comida ou escola dos filhos, ou para quitar dívidas com custo maior, como as de bancos e cartões de crédito.
Em geral, o serviço passa a ser oferecido a partir de pedidos dos próprios funcionários, que buscam uma forma de conseguir recursos para situações emergenciais de forma mais barata. Para muitos, a modalidade virou uma saída para chegar ao fim do mês.
Na Creditas, fintech que oferece o serviço desde o final de 2020, ocorreu aumento de mais de 200% nas solicitações de antecipação salarial no primeiro semestre de 2022, em relação ao mesmo período do ano anterior.
Média de R$ 2 mil antecipados
O levantamento foi feito levando em conta o universo de 800 mil funcionários de empresas que têm acesso ao serviço oferecido pela Creditas Benefícios. Cerca de 96% das pessoas que anteciparam seus salários no período acessaram um tíquete médio de R$ 2 mil.
A vice-presidente da Creditas Benefícios, Viviane Sales, destaca que a antecipação é vantajosa para os empregados, pois, não necessariamente, precisam de crédito, mas necessitam dos recursos para resolver questões pontuais:
"Com essa solução, você consegue dar antecipação para quem precisa e no momento em que ela precisa. Temos 80% da população brasileira endividada, 30% negativada e temos mais de 60% dos colaboradores com mais de 50% da renda comprometida. Então, dificilmente isso não está acontecendo nas empresas".
Pela Creditas, o funcionário pode antecipar até 40% do salário. As duas primeiras solicitações são gratuitas e a partir da terceira, há uma taxa de R$ 5. Não há cobrança de juros.
Segundo pesquisa da Creditas realizada a partir de seu próprio serviço, em janeiro de 2022, 63% dos trabalhadores com carteira assinada estão com ao menos 50% da renda comprometida com dívidas.
A analista de sucesso do cliente, Paula Rodrigues, começou a usar o serviço de antecipação em março. Morando sozinha em um imóvel alugado, ela sentiu o orçamento pesar nos últimos meses e passou a recorrer a essa modalidade para situações de emergência. Ela costuma antecipar até 30% do salário pagando R$ 5 por saque:
"Já tive problemas com dívidas há alguns anos e, agora, estou tentando cuidar da minha vida financeira. Antes, era 100% descontrolada. Chegou o caso do meu nome ficar sujo no Serasa. A antecipação acaba sendo boa para emergência, quando aparece uma conta que você não esperava".
Consultoria financeira
A fintech Paketá, que já oferecia crédito consignado a empresas, incorporou a antecipação salarial em seu leque de produtos em fevereiro após perceber que muitas pessoas acessavam o consignado para valores baixos, o que não é indicado. E houve maior demanda por áreas de recursos humanos de empresas.
"Quando a gente fala de antecipação de salário, estamos emprestando dinheiro a um prazo curto, com uma certeza muito grande de que ele vai ser devolvido. Isso faz com que a taxa fique mais baixa na comparação com outros tipos de crédito", disse o CEO da Paketá, Fabian Valverde.
Cerca de 1.750 empresas dos mais variados setores já aderiram ao serviço. A Paketá costuma antecipar de 30% a 40% do salário, com tíquete médio de R$ 500. A taxa por saque varia em cada acordo firmado, podendo ser de R$ 2 a R$ 5. Não há cobrança de juros.
Na opção pelo consignado, por exemplo, a taxa de juros varia entre 1,70% a 3,90% ao mês, a depender da rotatividade dos funcionários.
Na fintech Leve, a antecipação passou a ser ofertada em janeiro, com o objetivo de retirar os funcionários de créditos mais caros.
Taxa de R$ 8,99
A empresa cobra taxa única de R$ 8,99 por saque, sem juros. No consignado, opção que a fintech também oferta, os juros variam de 1,29% a 2,89% ao mês.
Cerca de 10 mil pessoas já têm acesso ao produto, com uso de duas a três antecipações por mês. A procura tem sido feita, principalmente, por empresas de tecnologia.
"Fizemos uma pesquisa qualitativa e identificamos que os usos são para comprar comida, ajudar a pagar o colégio e pagar conta com desconto. Também oferecemos consultoria financeira para os funcionários sem custo. O colaborador fala com um consultor por videochamada ou WhatsApp", destacou o CEO da Leve, Gustavo Raposo.
Pelo lado das empresas, a antecipação é uma forma de ajudar na saúde financeira dos funcionários e, com isso, melhorar sua produtividade.
Foi o caso da empresa de pagamentos Pague Veloz, que passou a contar com a antecipação no final de 2020, depois de identificar a demanda por parte dos trabalhadores.
"Pelos canais que temos aberto, percebemos muitas solicitações de empréstimo, de antecipação do salário, se teria alguma forma de adiantamento ou de vale. Começaram a surgir muitas questões financeiras e, por isso, pensamos nisso para melhorar a saúde financeira dos colaboradores", disse a coordenadora de RH, Karine Moraes.
Até o momento, 50% dos 383 funcionários já usaram. A empresa aderiu a um programa de educação financeira, com 70% de adesão.
"Vimos que fez muita diferença. Os colaboradores passaram a trabalhar com mais tranquilidade", diz Karine.
A Emicol, que fabrica produtos eletroeletrônicos, começou a usar o serviço. Na companhia, pode ser antecipado até 30% do salário.
Para analistas, é preciso cuidado
"É opção rápida, fácil e segura para uma emergência ou necessidade", disse a analista de administração e benefícios da Emicol, Julia Rodrigues de Paula.
Para profissionais de educação financeira, o serviço de antecipação pode ser benéfico para quem tem maior planejamento financeiro e quer sair ou evitar dívidas mais caras. No entanto, ponderam que é necessário cuidado para a prática não se tornar um vício que comprometa a renda no mês seguinte.
"O cuidado é que isso pode criar um hábito. Muitas vezes a antecipação está tapando o sol com a peneira. Fazer uma antecipação pequena só para quitar uma dívida e não pagar juros pode ser interessante. Mas a pessoa que recorre a essa prática tem que ter a consciência de que não vai receber o salário integral", disse o consultor Vinicius de Marchi, da W1 Consultoria Financeira.
Para quem apenas busca fazer frente a um imprevisto, trata-se de modalidade mais barata do que as opções de crédito disponíveis, uma vez que não há cobrança de juros, apenas taxa fixa para saques.
Redução de gastos
O consultor ressalta, porém, que o problema por trás da antecipação frequente do salário do mês seguinte é a falta de educação financeira.
Adenias Gonçalves Filho, sócio da consultoria Bem-Financeiro, afirma que é preciso envolver toda a família na reorganização das contas domésticas para que o valor adiantado não faça falta depois:
"O que mais importa é fazer a lição de casa e reduzir gastos. Aquilo que tem comprometimento fixo, como aluguel, terá de ser pago. Mas em gastos variáveis é possível ter disciplina, evitando, por exemplo, compras parceladas".
Com altas taxas de juros praticadas pelo mercado em diversas modalidades de crédito, Filho diz que adiantar o salário pode ser mais vantajoso do que pegar um empréstimo consignado. Com controle e estratégia, até vale a pena solicitar o adiantamento de alguma quantia para viabilizar uma renda extra.
"Se a pessoa pega R$ 1.000 e paga só R$ 5, é uma taxa baratíssima. É possível, então, usar essa antecipação de forma inteligente, comprando produtos que possam ser comercializados com velocidade e alta lucratividade depois", analisa.
E acrescenta:
"Tem muita família que vende doces, cachorro-quente, salgadinhos. Mesmo endividada, a pessoa pode usar o dinheiro para comprar material para fazer bolo, vender e sair do aperto. Só é necessário ter consciência de que essa é uma oportunidade para que o impacto lá na frente seja o menor possível".
Dicas para ficar no azul
Orientações dadas por Ricardo Teixeira, coordenador do MBA de Gestão Financeira da FGV, e Jansen Costa, da Fatorial Investimentos.
Evite fazer gastos fora do seu orçamento.
A maior dica para lidar com as dívidas é evitá-las ao máximo. Um dos grandes vilões é o parcelamento: ele pode caber no bolso naquele mês, mas as cotas mensais podem se chocar com gastos sazonais, como, o pagamento do Imposto de Renda ou IPVA.
Fique por dentro da taxa de juros de cada operação
Cartões de crédito e cheque especial costumam ter os juros mais elevados do mercado, portanto, esses pagamentos devem ser prioridade. Quando já se contraiu a dívida, vale a pena trocá-la por outra com juros mais baixos, ou, na negociação, tentar reduzir o percentual dos juros cobrados.
Se fechou acordo, não atrase o pagamento de parcelas
Outra dica é só fechar um acordo caso tenha certeza de que a parcela definida cabe no orçamento. Para isso, o planejamento financeiro é essencial. Gastos fixos e variáveis do mês devem ser anotados para ver o que sobra para pagar a dívida. A parcela de cada mês não pode ultrapassar o valor planejado.
Avalie se vender algo pode resolver o problema
Quando não sobra dinheiro, vale pensar em vender algum item para quitar o débito. Nesse caso, é melhor fazer o pagamento à vista e tentar garantir um desconto maior.
Valedoitaúnas (iG)