Auxílio emergencial cortado faz famílias dependerem de doações para comer
29 de outubro de 2020Ao menos 8,6 milhões de trabalhadores sofreram bloqueio indevido com a mudança do programa
Ao menos 8,6 milhões de trabalhadores sofreram bloqueio indevido com a mudança do programa – Foto: Agência O Globo/Daniel Marenco
Pelo menos 8,6 milhões de trabalhadores tiveram o auxílio emergencial cortado quando as parcelas foram reduzidas de R$ 600 para R$ 300. De um lado, o governo alega que esses beneficiários teriam deixado de atender aos critérios de elegibilidade. Do outro, sem o crédito, trabalhadores informais, que não têm conseguido trabalhar na pandemia, precisam depender de doações para colocar comida na mesa.
Moradora do Paraná, Fabiana Rosa da Silva, de 39 anos, que tem três filhos – de seis, dez e 15 anos – estava recebendo R$ 1,2 mil de auxílio emergencial. No entanto, quando o governo começou a pagar o auxílio residual, ao invés de ter um crédito de R$ 300, ela teve o benefício bloqueado, passando a receber apenas a quantia do Bolsa Família: R$ 239. Pela regra, como ela continuava desempregada, o crédito deveria ser do maior valor.
"Estou me virando com doações da igreja. Eles já nos deram alimentos, ajudaram a pagar a luz. Ainda tenho um filho que é diabético!", conta Fabiana. "O governo alega que houve um problema, mas não sabe informar qual. Ligo no 111 e não consigo nada. Não há nenhuma opção de contestação".
Antes da pandemia, Fabiana trabalhava como diarista e seus filhos faziam todas as refeições na escola: almoço, lanche e janta. Agora, sem trabalho e com todos em casa, se vê numa situação crítica.
"É revoltante porque você tem disposição de trabalhar, mas a situação está limitada. Antes emprego era mais fácil. Agora, as pessoas não querem contratar nem como diarista, com medo que você leve o vírus para casa delas. Além disso, não tenho onde deixar os meus filhos", desabafa.
O defensor público federal Raphael Caio Magalhães afirma que muitos bloqueios têm sido feitos porque o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) têm levantado dados aos quais o Ministério da Cidadania não tinha acesso antes. O problema é que muitas dessas informações estão equivocadas, prejudicando os beneficiários do auxílio.
"Muitos bloqueios são por constatar que a pessoa está empregada quando, na verdade, não está. Ou então por verificarem que ela possui um veículo em seu nome. Apesar de isso não ser um impeditivo legal, eles creem que é um indicativo de renda", explica o defensor. "Em maio, o maior número de ações era por outra razão. O governo estava bloqueando o benefício de pessoas que estavam livres mas que, no sistema, ainda constavam como presas por uma base de dados defasada".
Magalhães ainda esclarece que há uma regra diferente para que a pessoa tenha direito ao auxílio emergencial residual: o benefício não é devido a pessoas com patrimônio superior a R$ 300 mil. Os beneficiários que tiveram o pagamento das parcelas extras do auxílio emergencial cancelado e não concordam com o motivo que determinou o bloqueio podem entrar com o pedido de contestação somente até o próximo dia 2 de novembro através do site da Dataprev.
Também há como recorrer à Defensoria Pública Federal para fazer uma contestação extrajudicial, o que permite um deferimento mais rápido. Essa solução, no entanto, não abrange casos de pessoas que foram previamente autorizados e só depois cancelados. Dessa forma, quem está enquadrado nessa situação deve ingressar com ação judicial através da defensoria ou em Juizados Especiais Federais, sem a necessidade do acompanhamento de um advogado.
Esse é o caminho que a desempregada Mariana Avelino, de 42 anos, que mora em Niterói (RJ), está percorrendo para tentar reaver seu benefício. Beneficiária do Bolsa Família, foi automaticamente inscrita no auxílio emergencial, passando a receber R$ 600 por mês. No entanto, em agosto, devido a alguma falha no sistema não recebeu crédito nenhum.
"É um cancelamento indevido. Me encontro na mesma situação. Continuo desempregada, e o pai do meu filho também. Ele foi vítima de bala perdida, está com sequelas e ainda não tem como trabalhar. E eu não tenho creche para colocar a criança e ir trabalhar. Não entendo por que fui excluída", reclama Mariana.
Por causa do corte no benefício, a família está sem pagar o aluguel desde agosto e recorrendo a empréstimos de familiares para quitar outras despesas.
"A partir de setembro, eu voltei a receber o Bolsa Família. Mas esse dinheiro só dá para comprar uma cesta básica e outras poucas coisas para o meu filho de dois anos e meio. Tive até que vender meu celular", conta a desempregada.
O TCU respondeu que, para fazer os novos levantamentos, tem utilizado as bases de dados de órgãos e entidades da administração pública federal, cujas informações são de responsabilidade dos respectivos gestores. Ainda alegou que não determinou o bloqueio de pagamentos e que os "cruzamentos de dados permitem identificar indícios de irregularidades, que devem ser confirmados ou não pelos órgãos responsáveis". O CGU não enviou posicionamento até a publicação desta matéria.
Já o Ministério da Cidadania disse que se pronunciará oficialmente somente após averiguar todas as informações sobre os casos citados.
Sem perspectivas
Dados do IBGE, compilados na Pnad Covid-19, mostram que o auxílio emergencial chegou a cerca de 29,4 milhões de domicílios em junho, ou 43% do total de 68,3 milhões no País. Isso significa que cerca de 104,5 milhões de pessoas viviam em residências onde pelo menos um morador recebeu o auxílio emergencial, o que representa 49,5% da população brasileira.
O benefício representou um ganho de 150% na renda domiciliar daqueles lares com rendimentos na faixa entre R$ 50,34 e R$ 242,15 per capita. Isso levou a redução de pessoas na extrema pobreza: em junho, 3,3% da população brasileira, ou sete milhões de pessoas, viviam com menos de R$ 150 mensais. Desde a década de 1980, o menor índice registrado havia sido de 4,2% em 2014.
Lucilene da Silva, de 39 anos, que mora no interior do Piauí, não teve o auxílio emergencial cortado. Porém, a redução no valor já fez uma grande diferença na sua qualidade de vida. Grávida de nove meses e com outra filha pequena, a desempregada que costumava atuar como diarista diz estar dependendo de doações.
"Eu recebia R$ 130 de Bolsa Família e trabalhava como diarista. Na pandemia, passei a receber R$ 1,2 mil e comecei a viver desse auxílio. Agora, estou recebendo R$ 300 e estou totalmente desesperada. Imagine eu, perto de ter nenê e não tendo nada para levar para maternidade?", lamenta Lucilene. "A gente está passando por uma dificuldade muito grande, e o presidente não vê. Não sei o que vou fazer no próximo ano, com filho pequeno, recebendo só o Bolsa Família".
Valedoitaúnas/Informações iG