‘As casas tremem’ a vida na Baía da Traição, onde o mar engole as casas
18 de dezembro de 2024Baía da Traição sofre impactos do avanço do mar, um processo que começou há anos – Foto: Francisco França/UOL
Na pequena cidade paraibana de Baía da Traição, a 82 km de João Pessoa, moradores vivem em sobressalto. As casas tremem na região de Aldeia Forte – um problema que tem origem no mar e é agravado pelas mudanças climáticas.
A situação fez o município de 9.200 habitantes decretar estado de calamidade pública na Praia do Forte e em outras áreas costeiras afetadas pela erosão, em novembro, mas a situação vem de antes.
O líder indígena Antônio Pessoa Gomes Cacique, conhecido como Cacique Caboquinho, acompanha o problema há décadas – e teme pelo futuro.
"Vejo o avanço do mar há mais de dez anos. Os meus pais e avós já alertavam que isso um dia iria acontecer", diz ele. Pelo menos 26 famílias já tiveram de ser realocadas, segundo o cacique.
“Estamos seguros no alto e as pessoas que estavam na parte mais baixa foram realocadas para outras aldeias. Em janeiro, teremos uma maré alta que pode destruir tudo aqui e quero conseguir tirar o pessoal antes de a muvuca acontecer”, disse Cacique Caboquinho.
O cacique conta que o mar está avançando "por baixo", o que provoca tremor na aldeia. "As casas tremem. Quando o mar vai por baixo, o terreno começa a ceder", explica ele, dizendo que o mar avançou mais de 5 metros.
Aldeia Forte, na Baía da Traição, vê o mar avançado sobre as casas – Foto: Reprodução/Arquivo pessoal
Por que é assim?
O processo de erosão é uma combinação de vários fatores, incluindo a urbanização. Segundo especialistas ouvidos por Ecoa, a erosão está associada à dinâmica das marés, correntes marítimas e à força das ondas.
“A urbanização ocorreu de forma desordenada e muito próxima à costa. A remoção de vegetação nativa, como manguezais e restingas, e intervenções em cursos d'água, alteram o equilíbrio sedimentar natural”, explicou Celso Augusto Guimarães Santos, professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da UFPB.
A Paraíba teve um boom turístico nos últimos 20 anos e na Baía da Traição não foi diferente.
“Baía da Traição é um município menor e a gente percebe que ali começa um processo de urbanização – isso talvez seja o grande impacto. Houve falta de orientação e planejamento”, disse Saulo Vital, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal da Paraíba.
Os especialistas explicam que a destruição de imóveis é o impacto mais aparente, mas não o único. Entre os problemas da erosão está também a perda de habitats naturais, como dunas, áreas de mangue e do próprio rio.
A destruição ambiental destes habitats gera um desequilíbrio ecológico. Além disso, o avanço do mar provoca a salinização de solos e aquíferos, o que afeta a agricultura e a disponibilidade de água potável.
“Socialmente, há impactos na segurança alimentar, devido à redução da pesca artesanal, que é uma fonte de sustento para muitas comunidades locais. Do ponto de vista cultural, a erosão ameaça patrimônios históricos e áreas dos povos originários, que são importantes para a identidade local”, completou Celso Augusto Guimarães Santos.
A intensificação da erosão costeira observada nos últimos anos pode ter sido uma consequência das mudanças climáticas.
Urbanização e mudanças climáticas estão por trás do fenômeno – Foto: Francisco França/UOL
Ainda não é possível confirmar que houve um aumento do nível do mar na região ligado ao derretimento das calotas polares, mas a existência de eventos climáticos extremos, uma consequência do aquecimento global, também é um agente de erosão.
“Eventos climáticos extremos, como tempestades, que estão se tornando mais frequentes e intensos, aceleram a degradação da linha de costa, transportando grandes volumes de sedimentos e aumentando a força destrutiva das ondas. Além disso, mudanças nos padrões de precipitação podem alterar o transporte sedimentar dos rios, agravando a vulnerabilidade costeira”, explicou Celso Augusto Guimarães Santos.
O que fazer
Soluções passam por infraestrutura e medidas socioambientais. Especialistas apontam que construções costeiras, como quebra-mares, espigões e revestimentos, podem ajudar a reduzir a força das ondas, mas o planejamento deve ser cuidadoso para evitar mais impactos ambientais,
Além disso, é necessária a restauração dos ecossistemas costeiros, que funcionariam como barreiras naturais contra a erosão.
“A implementação de planos de manejo integrado da zona costeira, envolvendo as comunidades locais e promovendo a conscientização ambiental, é essencial para assegurar o uso sustentável dos recursos costeiros”, concluiu Celso Augusto Guimarães Santos.
Para Santos, o monitoramento contínuo e o planejamento urbano, com restrições para construções próximas à linha de costa, são indispensáveis para proteger a região a longo prazo.
“A questão é pensada com obras duras que podem acabar com o ambiente da praia, gerando mais impacto (...). Grande parte das vezes os critérios ambientais não são cumpridos e geram gastos públicos desnecessários. É preciso pensar em uma retirada [da zona urbana das praias] de uma forma planejada e com um reordenamento da orla”, disse Saulo Vital.
Calamidade
Com a aprovação do estado de calamidade, o município poderá buscar apoio emergencial, com pedido de recursos financeiros, para elaborar ações de recuperação das áreas afetadas.
O decreto tem validade de 180 dias, podendo ser prorrogado, caso a situação de risco de desastre permaneça.
Ecoa entrou em contato com o município para saber detalhes sobre o plano de contingência. O texto será atualizado assim que houver manifestação.
(Fonte: UOL)