Alimentos são desperdiçados enquanto prefeituras dão merenda industrializada
16 de agosto de 2020Na pandemia, agricultores de Pernambuco sentem a queda na compra de sua produção, que deveria ser destinada à alimentação escolar dos municípios
Feiras agroecológicas garantem comercialização dos pequenos agricultores – Foto: Inês Campelo/MZ Conteúdo
“Os agricultores me ligam dizendo que a produção está estragando e perguntam o que fazer”, conta Zita Barbosa, coordenadora do Centro de Mulheres Urbanas e Rurais de Lagoa do Carro e Carpina (Cemur), em Pernambuco. O relato reflete a situação vivida por milhares de várias famílias do campo que estão vendo suas plantações e produções de alimentos desperdiçadas, enquanto suas rendas diminuem e a população sente os impactos na qualidade da alimentação.
Sem as feiras agroecológicas e da agricultura familiar, suspensas para evitar aglomerações e sem aquisições por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e entregas para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), agricultoras e agricultores amargam a espera dos programas de ajuda do Governo Federal.
Após cinco meses de pandemia, o auxílio emergencial destinado às famílias agricultoras do país foi aprovado no Senado, na última quarta-feira (5). Ainda no início do agravamento da crise econômica e sanitária, a ampliação do auxílio federal para estes trabalhadores foi vetada por Jair Bolsonaro. Agora, outro projeto de lei (PL 735/2020) passou pelo Congresso Nacional e segue para sanção presidencial com possibilidade de vetos em pontos específicos.
O auxílio deverá chegar com atraso para quem garante a maior parte da produção de alimentos para consumo interno no Brasil. No mês de maio, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) chegou a emitir um parecer técnico em que apontava preocupação com a agricultura familiar e o abastecimento das cidades.
O órgão sugeria a renda emergencial como forma de dar suporte ao setor, já que os principais pontos de comercialização de produtos estariam fechados para reduzir os riscos de contágio pelo novo coronavírus. Contudo, o Governo Federal tem negado a possibilidade de desabastecimento, assim como vetou o auxílio no início da pandemia.
Organizações internacionais também apontam um cenário de dificuldades para agricultura familiar. De acordo com pesquisa do Instituto Interamericano de Cooperação Agrícola (IICA), divulgada no dia 28 de julho deste ano, a América Latina pode ter dificuldades no fornecimento de alimentos básicos. O instituto realizou o levantamento entre os meses de maio e junho, ouvindo 118 organizações ligadas à agricultura familiar em 29 países da região.
De maneira geral, há uma preocupação em relação à queda na oferta dos alimentos produzidos pelo setor por causa de medo de contaminação. As organizações relatam que os produtos mais afetados são grãos, cereais e vegetais e preveem que as produções de tomate, cebola, repolho e pescados também serão impactadas nos próximos seis meses.
Segundo o IICA, as principais dificuldades enfrentadas pela agricultura familiar nesse período são:
- A falta de equipamentos de proteção e protocolos sanitários que permitam aos produtores trabalhar com segurança;
- Limitações de transporte e para a distribuição da produção de alimentos, devido a restrições de tráfego e mobilidade, o que dificulta a movimentação comercial de produtos;
- Limitações no acesso ao crédito para a produção e reprodução da unidade familiar.
Alimentos produzidos por agricultores de Pernambuco – Foto: Débora Britto/Centro Sabiá
Esquecimento e lei ignorada
O esquecimento do campo se expressa nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal. Segundo Zita Barbosa, a prefeitura do município de Lagoa do Carro só veio iniciar o processo de licitação para contratação por meio do PNAE após quatro meses de pandemia e muita pressão dos trabalhadores locais.
Como medida de contenção de combate à Covid-19, as escolas municipais continuam fechadas. Em abril, foi sancionada a Lei 13.987/20, que garante a distribuição dos alimentos da merenda escolar às famílias dos estudantes da educação básica da rede pública por meio do recursos do PNAE. Mas a distribuição não têm suprido as reais necessidades das crianças e a situação se agrava fora das capitais e regiões metropolitanas.
O problema é que os alimentos vêm em pouca quantidade e também tem baixo valor nutricional, pois a Lei nº 11.947, que determina que, no mínimo, 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o PNAE seja utilizado na compra de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar, não está sendo cumprida, como exemplifica Zita sobre a licitação.
No caso de Lagoa do Carro, até o fechamento da reportagem, a contratação ainda não havia garantido a entrega dos produtos da agricultura familiar destinados à merenda. Há pelo menos cinco meses, o município de Lagoa do Carro não tem cumprido o previsto em lei e produtos industrializados têm tomado conta das merendas distribuídas pela rede municipal.
São entregues minicestas básicas com sete ou oito itens que garantem, em média, 15 dias de alimentação para as crianças. “Eu tenho conversado com as mães e, se tem dois alunos na casa, só um recebe as minicestas. O sofrimento é tanto do lado dos alunos quanto das agricultoras e dos agricultores, porque não conseguiram vender durante o primeiro semestre”, explica Zita.
O clima de ano eleitoral faz com que isso não seja percebido pela população. Uma agricultora de Lagoa do Carro, que prefere não ser identificada na matéria, diz que as comunidades receberam essas minicestas apenas duas vezes e que nelas tinham o “básico”. “Não era do melhor, mas era comestível”, acrescenta.
Na casa, quem tem direito à cesta é a sua neta. A agricultora acredita que a qualidade da cesta pode ser justificada por conta do valor repassado pela União a estados e município – R$ 0,53 por dia letivo para cada aluno da pré-escola. Acontece que antes mesmo da pandemia o PNAE já havia passado por cortes consideráveis.
Em 2017, o Ministério da Agricultura chegou a repassar R$ 1,24 bilhões para a agricultura familiar por meio do PNAE, mas este ano foram repassados apenas R$ 900 milhões. Do PAA, foi repassada uma verba emergencial durante a pandemia de cerca de R$ 13 mil para Lagoa do Carro e a cooperativa está na expectativa para escoar a produção.
Zita ainda chama atenção para um fator decisivo na prática e desenvolvimento da agricultura local: o município está há seis meses sem suporte de um técnico do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA). Um profissional do órgão governamental que atua em Paudalho tem ido para Lagoa do Carro vez ou outra, mas não tem condições de dar a assistência técnica correspondente à demanda do lugar.
Pressão dos agricultores
Em São José do Egito, no Sertão do Pajeú, a agricultora Maria de Lourdes do Nascimento conta que a garantia de repasses do PNAE para agricultura familiar sempre foi uma dificuldade. Durante a pandemia, o que tem garantido algumas contratações da prefeitura é a força de mobilização e articulação coletiva da Associação dos Apicultores e Meliponicultores Orgânicos do Alto Pajeú (Apomel) e da Associação Agroecológica do Pajeú (Asap).
Para ela, os processos de inserção das famílias no PAA e no PNAE têm muita “burocracia e política” que acabam por impedir o acesso da agricultura familiar feita pelos pequenos produtores aos programas. Sobre a política, principalmente em ano de eleições municipais, Lourdes afirma que os chamados “atravessadores”, pessoas que na verdade são produtores de maior porte, conseguem se cadastrar em ambos programas se colocando na vaga dos pequenos. A agricultora afirma que essa situação é recorrente nos cadastros feitos por meio do IPA.
Neste entrave, as famílias agricultoras da região conseguiram garantir participação no PAA deste ano, após terem ficado de fora em 2019. Mas o que tem driblado a crise para estas famílias é a comercialização de verduras porta a porta. São 38 associados na Apomel e 60 na Asap que têm recorrido ao esquema de entregas.
Diferente de Lagoa do Carro, já que que a agricultura familiar de São José do Egito tem participado em algum nível das contratações do PNAE, a merenda não vem em forma de cesta básica. Se apenas as cestas básicas não suprem as necessidades das famílias, elas fazem falta quando só os alimentos in natura são fornecidos.
“Aqui no sítio tem feijão, milho, batata, macaxeira. Tem jerimum. Principalmente quem mora em sítio, tem. Agora quem mora no centro da cidade é mais complicado. O pessoal está recebendo o auxílio emergencial que dá uma aliviada, mas mesmo assim é difícil a situação. A gente se preocupa porque eu tenho uma criança e você ver a criança pedindo um pão uma bolacha e não ter”.
As associações têm feito doações de alimentos para as comunidades da região. Lourdes avalia que as famílias que comercializavam seus produtos na feira perderam cerca de 30% da renda nos últimos cinco meses.
Cancelamento pelo Whatsapp no sertão
Em Flores, também no Sertão pernambucano, um grupo de mulheres que beneficia polpas de fruta da época e fornecem para a merenda escolar fez entregas no mês de fevereiro e depois ficou com o PNAE “suspenso no ar”, como diz a agricultora Vânia Santos. Elas foram informadas que a prefeitura não faria mais contratações pelo whatsapp. O argumento oficial era a de que seus produtos são perecíveis e, por isso, não têm como serem armazenados e entregues para a população.
“Estamos recebendo a merenda com produtos industrializados e eu acredito que grande parte dos agricultores do município que tinham contrato estão na mesma situação. Não fazem entregas e pararam de produzir, que nem a gente perdeu bastante acerola porque não tinha condição de armazenar. Nossos freezers estavam cheios e se continuassem ligados, a conta de energia ia subir. Como não estamos vendendo não temos como pagar a conta. Decidimos ficar com a que temos produzida e não produzir mais”.
As cinco mulheres que fazem parte do grupo têm, em média, de 30 a 40 anos e algumas são chefes de família. Cultivam outros tipos de alimentos e têm tentado comercializar por conta própria. Elas não estão cadastradas no PAA, como lamenta Vânia. De acordo com ela, isso se deve muito à falta de um escritório municipal do IPA.
Em Afogados da Ingazeira, também no Pajeú, a situação com o IPA aconteceu de maneira inversa durante o período pandêmico. Há cerca de um mês, o instituto cadastrou cerca de 45 famílias só nas mediações do sítio de Laje do Gato, no PAA. Porém, a agricultora Lucineide Cordeiro afirma que o que tem garantido a comida na mesa dos moradores locais são as suas próprias plantações, já que até então eles não faziam parte dos programas federais.
Ainda não foram feitas entregas para o programa e, ao que parece, o cadastramento chegou tardiamente, porque Lucineide chama atenção para o tempo de chuvas favorável que fortaleceu as lavouras locais nos últimos meses.
“O pessoal aqui se vira como pode, plantando para a própria alimentação. Mesmo nessa pandemia, a questão da agricultura se sobressaiu. O ano foi muito bom de inverno, aqui mesmo na minha comunidade choveu mais de 100 milímetros. Só que, no PAA e do PNAE, aqui na minha comunidade não tinha ninguém cadastrado”.
Valedoitaúnas/Informações iG