Afundamento do solo em Maceió pode durar até 10 anos: Entenda a formação dos bairros fantasmas
05 de setembro de 2021São 55 mil pessoas afetadas desde o tremor de terra em 2018 até a desocupação de imóveis nos bairros Pinheiro, Bom Parto, Mutange, Bebedouro e em parte do Farol. Área não deve voltar a ser habitada no futuro
Bairros de Maceió estão sendo afetados pelo afundamento do solo – Foto: Jonathan Lins/G1
Mais de 14 mil imóveis condenados em cinco bairros de Maceió: Pinheiro, Bom Parto, Mutange, Bebedouro e Farol. Após décadas de mineração, parte da capital alagoana passa por um lento processo de afundamento do solo que abre rachaduras em ruas, prédios e casas, obrigando cerca de 55 mil pessoas a abandonarem suas residências e seus negócios.
A tragédia urbana em curso transforma áreas inteiras em bairros fantasmas, um problema que ainda está longe do fim, já que o solo continua afundando lentamente. "10 anos é o tempo médio necessário à estabilização. Poderá ser mais, ou um pouco menos", avalia o pesquisador e especialista em geotécnica e geologia, Abel Galindo Marques.
As primeiras rachaduras surgiram no bairro do Pinheiro, após fortes chuvas em fevereiro de 2018. Ainda eram poucas, mas elas aumentaram quando um tremor de terra foi sentido duas semanas depois em diversos bairros, no dia 3 de março do mesmo ano. Era o início de um vasto trabalho de investigação e de um drama para milhares de famílias.
A empresária Áurea Montes morou durante 22 anos no bloco 23 do Conjunto Jardim Acácia, no Pinheiro. Ela relembra com carinho os episódios que marcaram sua vida durante o tempo em que viveu no apartamento com o marido e o filho, até ser obrigada a abandonar o lar por risco de desabamento.
"Minha memória mais marcante no Pinheiro foi o nascimento do meu filho. Ele nasceu e cresceu lá, fez amigos, brincou nas ruas do bairro. Foi lá que ele aprendeu a andar de bicicleta, correu na rua, jogou bola. Ele começou a vida escolar, passou no vestibular, entrou na Ufal. Todos esses momentos eram compartilhados com minhas vizinhas de prédio", relembra emocionada.
Quando soube que teria que deixar o apartamento com as outras famílias, ficou em choque.
"Foi com muita tristeza e indignação que a gente recebeu a notícia [da desocupação]. Ficamos confusos sem saber o que estava realmente acontecendo. Foi assustador. A gente não sabia o que estava acontecendo de verdade nem o que pode ainda acontecer. Bateu uma tristeza tão grande, foi muito choro", disse Áurea.
Somente um ano depois das primeiras rachaduras foi confirmado pelas equipes do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), órgão ligado ao governo federal, que a extração de sal-gema (minério utilizado na fabricação dde soda cástica e PVC) feita pela Braskem na região onde existiam falhas geológicas provocaram a instabilidade no solo. As rachaduras vistas nas ruas e nos imóveis são reflexo dessa movimentação.
Em maio de 2019, a petroquímica multinacional interrompeu a mineração e paralisou a operação da fábrica de cloro-soda na cidade. Nessa época, as rachaduras já tinham atingido bairros vizinhos: Mutange, Bebedouro e Bom Parto. A fábrica voltou a operar em fevereiro de 2021, mas com sal importado do Chile.
Atualmente, mas em menor escala, a instabilidade também já afeta alguns imóveis do Farol, 5º bairro incluído oficialmente no monitoramento dos órgãos de segurança. A área atingida neste bairro é pequena, mas obrigou o único hospital psiquiátrico público ddd Alagoas a mudar de endereço.
Versão 4 do Mapa de Ações Prioritárias com a ampliação das áreas de monitoramento dos bairros de Maceió afetados por rachaduras provocadas pela exploração de sal-gema – Foto: Divulgação/Defesa Civil
A Defesa Civil de Maceió elaborou o Mapa de Linhas de Ações Prioritárias (clique aqui para abrir em alta resolução), que está em sua quarta versão. O documento (imagem acima) recomenda a realocação dos imóveis e monitoramento constante das áreas com instabilidade (na cor verde). Ele mostra também a localização de cada mina explorada pela empresa (em círculos cinza).
Porém, a mineração já tinha deixado cavidades, minas ou cavernas sob o solo. Atualmente, 35 cavernas estão identificadas e a mineradora informou que segue monitorando a região para acompanhar a evolução de sua estabilização.
A Braskem explica que elas estão sendo fechadas com a técnica mais apropriada para cada uma (com cimento, areia ou rochas) e que o plano de estabilização e monitoramento é aprovado junto à Agência Nacional de Mineração (ANM).
É esse processo de preenchimento que deve fazer com que o solo pare de afundar. "Quando a rocha salina é desestabilizada, que é o caso, ela começa a fluir milimetricamente ao longo dos anos. Ela se torna uma massa mole se deformando na direção das cavernas. Se, ao invés de areia, essas cavernas fossem preenchidas com concreto, uma operação muito difícil, a estabilização seria em pouco tempo", explicou Galindo.
As pessoas que vivem nos bairros vizinhos aos afetados temem uma tragédia maior, mas o pesquisador descarta risco de afundamento repentino.
"O afundamento é ao longo da Av. Major Cícero de Góes Monteiro, entre o IMA e o Colégio Bom Conselho [no Mutange]. O processo é lento, entre 1,0 cm e 2,5 cm por mês. 75% das 35 minas [de sal-gema] situam-se nessa área da avenida. Por isso não há aumento do risco nas áreas de instabilidade do afundamento do solo", afirma Abel Galindo.
Histórias interrompidas
O levantamento mais recente indica que dos 14.402 imóveis com recomendação para desocupação, 13.871 já foram esvaziados. Os moradores levaram deles o que podiam reaproveitar, até mesmo portas, janelas e telhados.
"Perdemos nossa história, nossas memórias, nossas lembranças da infância, da adolescência. Isso se repete aos milhares nos 5 bairros. Vivemos um luto coletivo não reconhecido", lamenta Alexandre Sampaio, ex-morador do bairro do Pinheiro.
Sampaio é jornalista e atualmente preside a Associação dos Empreendedores no Bairro do Pinheiro e região afetada pela Braskem. Ele tinha 3 empresas no bairro e se viu obrigado a mudar toda sua vida por causa dos efeitos da mineração.
"Nossa vida, nosso sustento e nossos planos de aposentadoria, como empresários, estavam ali no Pinheiro. Quando tudo veio à tona, entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, vimos nossos planos literalmente afundarem com as rachaduras provocadas pela Braskem: em menos de 3 meses fomos obrigados a mudar em caráter de emergência pela falta de clientes, queda brutal de 80% do faturamento e medo de permanecer numa área de risco", relembra.
Mas há quem não tenha conseguido deixar o bairro. "Ficar distante é desgaste, as lembranças estão aqui. E ainda tem muita gente por aqui, amigos nossos que não saíram do bairro", conta a empresária Áurea Montes, que se mudou para um imóvel a apenas 1 km de distância da antiga moradia interditada.
"Da minha janela eu via quando meu filho chegava, via minha vizinha, o movimento das crianças na rua, os filhos dos vizinhos que você viu nascer, crescer... nós éramos como uma família. É uma vida, as lembranças são imensas", relembra.
O prédio em que Áurea morou continua de pé, embora tenha sido completamente desocupado e lacrado. Mas outros imóveis já nem existem mais. Oito blocos do conjunto Jardim Acácia e o Edifício Hermon foram os primeiros demolidos porque as rachaduras comprometeram suas estruturas a tal ponto que o risco de desabamento era iminente.
Edifício no bairro do Pinheiro, em Maceió, onde morou a empresária Áurea Montes – Foto: Rodolfo Marcelo/Arquivo pessoal
Nem todo mundo foi obrigado a deixar suas casas. Algumas poucas ruas não tiveram indicação de realocação e os moradores que continuam morando nestes bairros dizem que as rachaduras avançam sobre áreas que ficaram fora do mapa da linha de ações. Um problema que deixa em suspenso a vida de quem vive na incerteza do futuro.
"Eu não tenho vergonha de dizer que estou tomando remédio pra dormir. Porque quando eu deito na minha cama, eu vejo [as rachaduras]. Essas fissuras estão aumentando e nos deixando angustiados. Você viver em um bairro, ver escombros e mais escombros e a gente aqui?", questiona aos prantos a dona de casa Lúcia Carvalho, que mora em um prédio no Pinheiro.
Outra moradora do mesmo bairro relata que já entrou em contato com as autoridades. "Chamamos a Defesa Civil por quatro vezes e ela informou que estava em avaliação e monitoramento, mas que eu não deveria sequer pintar a minha casa por esse motivo", disse a moradora Marcela Marques.
A Defesa Civil municipal confirmou o chamado dos moradores das ruas com imóveis que não têm indicação de realocação e disse que segue monitorando as áreas incluídas no Mapa de Linhas de Ações Prioritárias e também no entorno.
Acordos e indenizações
Os moradores que continuam vivendo nos imóveis sem indicação de realocação cobram a inclusão no mapa de risco, que possibilita participação no Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação (PCF) da Braskem para os proprietários dos imóveis atingidos pela mineração.
A Braskem informou que vem cumprindo um cronograma de ingresso dos moradores no fluxo de compensação financeira conforme as zonas do mapa de desocupação e monitoramento e que o cumprimento do Termo de Acordo é monitorado de perto pelas autoridades signatárias.
As negociações com quem já faz parte do programa começaram em 2020, após um termo firmado na Justiça entre a empresa, Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado de Alagoas (MP-AL), Defensoria Pública da União (DPU) e Defensoria Pública do Estado de Alagoas (DPE) para acelerar as indenizações, já que os processos individuais na Justiça poderiam ser muito mais demorados.
Dos mais de 14 mil apartamentos, casas e estabelecimentos comerciais incluídos no mapa, 5.876 proprietários haviam sido indenizados até o final do mês de julho, de um total de 6.904 acordos firmados. Outras 1.366 propostas estavam em negociação.
Mesmo assim, muitas famílias ainda protestam por agilidade nos processos de indenização e questionam também os valores propostos pela empresa. Associações como a de Sampaio foram criadas para tentar agilizar a negociação e a reavaliação do valor a ser pago por cada imóvel.
"O acordo firmado entre os MPs e Defensorias foi a institucionalização da barbárie e da injustiça. Pôs, individualmente, cada vítima fragilizada pela perda do imóvel ou da empresa, do chão e do sustento, adoecida e amedrontada pela incerteza, enfim, pôs gente comum como formiguinha para negociar com uma empresa monstruosamente grande", questiona Alexandre Sampaio, da Associação dos Empreendedores do Pinheiro.
"É lógico que, nessa luta desigual, a Braskem faz o que quer, do jeito que quer, e está causando uma dupla calamidade. A primeira foi a expulsão forçada e a segunda calamidade é a profunda injustiça e desequilíbrio na 'imposição' de valores aviltantes, que chegam a menos de 50% do valor dos imóveis de moradores e, no caso das empresas, as propostas da Braskem cobrem apenas 2% do prejuízo que muitos negócios teriam direito. É o caso da minha imobiliária que fechou depois de sair do Pinheiro", afirma Sampaio.
Em entrevista ao programa Cidades e Soluções, da Globo News, o vice-presidente executivo da Braskem, Marcelo de Oliveira Cerqueira, disse que as propostas apresentadas pela empresa "levam em consideração imóveis semelhantes em regiões semelhantes de Maceió, ou seja, é pelo valor comparativo. Além disso todas as benfeitorias que a pessoa tem na casa dela nós indenizamos, danos morais e acréscimo de 10%. Todo esse tecnicismo é baseado em normas do Banco Mundial e nas normas brasileiras e nós respeitamos isso claramente".
Ainda sobre o questionamento de que os acordos são fechados arbitrariamente, o vice-presidente da Braskem explica que o programa foi criado para dar celeridade às negociações, mas que os moradores podem discordar e propor uma nova avaliação do imóvel.
"Há uma negociação onde se apresentam todos os critérios nos quais se baseiam os valores a serem propostos para os moradores, que têm a opção, caso não concordem com o valor, de propor uma nova negociação com base em algum laudo, algum material que atinja critérios técnicos. É refeito o estudo e então é apresentada uma nova proposta. Se ao final não concordarem com essa proposta, ele não tem que assinar. A adesão ao programa é voluntária, ele pode caminhar de uma outra forma naquilo que ele avaliar mais justo. Então, o programa de compensação financeira é uma alternativa mais célere de resolver a situação", afirma Marcelo Cerqueira.
Bairros não devem ser habitados novamente
Com a desocupação de bairros de Maceió afetados pelo afundamento do solo e rachaduras, moradores levaram portas, janelas e até telhados de suas residências – Foto: Jonathan Lins/G1
A movimentação do solo compromete a estrutura das edificações, provocando rachaduras e até desabamentos. Por isso, não há perspectiva de que os bairros fantasmas que se formaram após a desocupação possam voltar a ter moradias no futuro.
"A área deverá ser isolada e reabilitada para outra finalidade. Talvez seja demolida e transformada em uma área verde, de observação permanente. É uma possibilidade, mas não temos certeza do que vai acontecer, ou seja, qual será a finalidade, o novo fim que será dado após a reabilitação dessa área", diz a engenheira e geóloga Regla Toujaquez Massahud, do Campus Centro de Ciências Agrárias (Ceca) da Ufal.
A pesquisadora fez parte do primeiro grupo de trabalho que acompanhou a situação inicial do afundamento dos bairros. Atualmente, ela representa a Ufal em um grupo de estudos a convite da Braskem para propor, entre outros projetos, o que pode ser feito nas áreas após as demolições.
A partir de ações do MPF, a Braskem foi condenada a recuperar a área degradada, mas a empresa não possui autonomia sobre a região desocupada e o acordo sócio-urbanístico assegura que uma eventual destinação deve estar em conformidade com o Plano Diretor do Município.
Além das regiões afetadas diretamente, foram identificadas localidades afetadas indiretamente: Flexal de Baixo, Flexal de Cima e parte da Rua Marquês de Abrantes, no bairro de Bebedouro, que sofrem os efeitos da desocupação de imóveis no entorno, perdendo comércio, equipamentos públicos e força econômica, entrando em um processo chamado de ilhamento socioeconômico.
Uma tragédia sem precedentes em Maceió, com impactos ambientais, sociais e econômicos que vão deixar na população feridas difíceis de cicatrizar.
"Nós estamos clamando por justiça, clamando por um pouco de humanidade, clamando por generosidade e por empatia pelo que nós estamos passando aqui", diz a dona de casa Lúcia Carvalho, que chora ao mostrar as rachaduras que atingiram seu apartamento.
Valedoitaúnas (G1)